sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A Mediadora/O Arcano Nove - Capitulo 5

     Sentei-me totalmente desperta. Ela estava de volta. Ainda mais alterada do que na noite anterior. Eu tive de esperar um tempo enorme antes que a mulher se acalmasse o bastante para falar comigo.


     - Por quê? - perguntou ela, quando parou de gritar. – Por que você não disse a ele?
     - Olha - falei, tentando usar uma voz tranquilizadora, como o padre Dom quereria que eu fizesse. - Eu tentei, certo? O cara não é a pessoa mais fácil de achar. Vou contatá-lo amanhã, prometo.


     Ela tinha meio que tombado de joelhos.


     - Ele se culpa. Ele se culpa pela minha morte. Mas não foi culpa dele. Você tem de dizer. Por favor.


     Sua voz embargou horrivelmente no por favor. A mulher estava um trapo. Quero dizer, eu já vi um bocado de fantasmas na pior, mas essa ganhava o prêmio, vou te contar. Juro, era como Meryl Streep fazendo aquela tremenda cena de choro de A escolha de Sofia ao vivo no tapete do seu quarto.


     - Olha, dona - falei. Em voz tranquilizadora, lembrei a mim mesma. Tranquilizadora.


     Mas não há nada realmente tranquilizador em chamar alguém de dona. Assim, lembrando-me de como Dillan tinha ficado meio furioso comigo por não ter perguntado o nome dela, falei:


     -Ei. Por sinal, qual é o seu nome?


     Fungando, ela só dizia:


     - Por favor. Você tem de contar a ele.
     - Eu disse que vou contar. - Minha nossa, o que ela achava que eu estava fazendo aqui. Algum tipo de serviço amador? - Me dê uma chance, certo? Essas coisas são meio delicadas, a senhora sabe. Eu não posso ir simplesmente abrindo a boca e falando. A senhora quer isso?
     - Ah, meu Deus, não - disse ela, levando a mão fecha da à boca e mordendo-a. - Não, por favor...
     - Então certo. Esfrie um pouco. Agora diga...


     Mas ela já tinha ido embora.
     Uma fração de segundo depois Dillan apareceu. Estava aplaudindo baixinho como se estivesse assistindo a um teleteatro.


     - Esse foi o seu melhor desempenho até hoje – disse ele, baixando as mãos. -Você parecia envolvida, ainda que enojada.


     Olhei-o furiosa.


     - Você não tem umas correntes para chacoalhar por aí? - perguntei mal-humorada.


     Ele veio até minha cama e se sentou. Eu tive de puxar os pés rapidamente para não serem esmagados.


     - E você não tem algo que queira me contar?


     Balancei a cabeça.


     - Não. São duas da manhã, Dillan. A única coisa que eu tenho na cabeça agora é dormir. Você se lembra do que é dormir, não é?


     Dillan me ignorou. Ele faz isso um bocado.


     - Eu também recebi uma visita há pouco tempo. Acho que você conhece. Um certo Sr. Peter Simon.
     - Ah.


     E então - não sei por que - caí deitada de novo e puxei um travesseiro sobre a cabeça.


     - Não quero saber disso - falei, com a voz abafada debaixo do travesseiro.


     A próxima coisa que vi foi que o travesseiro tinha voado das minhas mãos - mesmo que eu o estivesse segurando com força - e caído com violência no chão. Com o máximo de violência que um travesseiro pode cair, o que não é muito.
     Fiquei ali, piscando no escuro. Dillan não tinha se mexido um centímetro. Esse é o negócio com os fantasmas, veja só. Eles são capazes de mover coisas - praticamente qualquer coisa que queiram - sem levantar um dedo. Fazem isso com a mente. É bem assustador.


     - O que é? - perguntei irritada, com a voz mais esganiçada do que nunca.
     - Quero saber por que você disse ao seu pai que há um homem morando no seu quarto.


     Dillan parecia furioso. Para um fantasma, até que ele tem um temperamento bem tranquilo, de modo que quando fica furioso é bem óbvio. Para começar, a cicatriz na sobrancelha fica branca.
     As coisas não estavam se sacudindo naquela hora, mas a cicatriz praticamente luzia no escuro.


     - Ahn - falei. - Na verdade, Dillan, há um cara morando no meu quarto, lembra?
     - É, mas... - Dillan se levantou da cama e começou a andar de um lado para o outro. - Mas eu não estou realmente morando aqui.
     - Bem. Só porque, tecnicamente, Dillan, você está morto.
     - Eu sei disso. - Dillan passou a mão pelo cabelo, de um jeito meio frustrado. Eu já contei que Dillan tem um cabelo bem legal? É preto, curto e parece meio eriçado, se é que você me entende. - O que eu não compreendo é por que você falou com ele sobre mim. Eu não sabia que incomodava tanto a você eu estar aqui.


     A verdade é que não. Não incomoda, quero dizer. Incomodava, mas antes de Dillan salvar minha vida umas duas vezes. Depois disso eu meio que superei.
     Só que me incomoda quando ele pega meus CDs emprestados e não coloca de novo na ordem certa quando acabou de ouvir.


     - Não - falei.
     - Não o quê?
     - Não me incomoda você morar aqui. - Eu me encolhi.


     Má escolha de palavras.

     - Bem, não que você more aqui, já que... quero dizer, não me incomoda que você fique aqui. Só que...
     - Só que o quê?


     Falei rapidamente antes de perder a coragem:


     - Só que eu não consigo deixar de ficar pensando em por quê.
     - Por que o quê?
     - Por que você está aqui há tanto tempo.


     Ele só me olhou. Dillan nunca me contou nada sobre sua morte. Na verdade nunca me contou nada sobre sua vida antes da morte. Dillan não é o que você pode chamar de comunicativo, mesmo para um cara. Quero dizer, se você levar em consideração que ele nasceu cento e cinqüenta anos antes do programa da Oprah e não sabe chongas sobre as vantagens de compartilhar os sentimentos - que é bom não manter as coisas trancadas por dentro -, isso meio que faz sentido.
     Por outro lado, eu não podia deixar de suspeitar de que Dillan estava perfeitamente em contato com suas emoções, e que simplesmente não tinha vontade de me falar delas. O pouco que eu havia descoberto sobre ele - como seu nome completo, por exemplo - fora a partir de um velho livro que Mestre conseguiu, sobre a história do norte da Califórnia. Eu nunca tive coragem realmente de perguntar a Dillan isso. Sabe, sobre a história de que ele deveria se casar com a prima, que por acaso amava outro, e de como Dillan desapareceu misteriosamente a caminho da cerimônia... Não é o tipo de assunto que a gente possa puxar.


     - Claro - falei, depois de um curto silêncio, durante o qual ficou claro que Dillan não ia me dizer chongas -, se você não quiser conversar sobre isso, tudo bem. Eu esperava que a gente pudesse ter, você sabe, um relacionamento aberto e honesto, mas se é pedir demais...
     - E quanto a você, Karen? - disparou ele de volta. - Você tem sido aberta e honesta comigo? Acho que não. Caso contrário, por que seu pai viria atrás de mim daquele jeito?


     Chocada, sentei-me um pouco mais ereta.

     - Meu pai foi atrás de você?
     - Nombre de Dios, Karen - disse Dillan irritado. – O que você esperava que ele fizesse? Que tipo de pai ele seria se não tentasse se livrar de mim?
     - Ah, meu Deus - falei completamente sem graça. - Dillan, eu nunca disse uma palavra sobre você com ele. Juro. Foi ele quem puxou o assunto. Acho que ele anda me espionando, ou sei lá o quê. - Essa era uma coisa humilhante de admitir. - Então... O que você fez? Quando ele foi atrás de você?


     Dillan deu de ombros.


     - O que eu poderia fazer? Tentei me explicar do melhor modo possível. Afinal de contas, minhas intenções são as melhores possíveis.


     Droga! Mas espera um minuto.


     - Você tem intenções?


     Sei que é patético, mas neste ponto da vida, até mesmo ouvir dizer que o fantasma de um cara pode ter intenções - ainda que sejam as melhores possíveis - era meio legal. Bem, o que você esperava? Eu tenho dezesseis anos e nunca ninguém me convidou para sair. Dá um tempo, certo?
     Além disso, Dillan era gato demais, para um morto.
     Mas infelizmente suas intenções para comigo pareciam ser apenas platônicas, se o fato de que ele pegou o travesseiro que tinha jogado no chão - dessa vez com as mãos - e atirou na minha cara servisse de indicação.
     Isso não parecia o tipo de coisa que um cara loucamente apaixonado por mim faria.


     - Então o que meu pai disse? - perguntei quando tinha afastado o travesseiro. - Quero dizer, depois de você garantir que suas intenções eram as melhores possíveis?
     - Ah - disse Dillan, sentando-se de novo na cama. – Depois de um tempo ele se acalmou. Eu gosto dele, Karen.


     Funguei.


     -Todo mundo gosta. Ou gostava, quando ele era vivo.
     - Ele se preocupa com você, você sabe.
     - Ele tem coisas muito maiores com que se preocupar - murmurei.


     Dillan piscou, curioso.
     - Como o quê?
     - Ah, não sei. Que tal o motivo para ele estar aqui em vez de no lugar aonde as pessoas devem ir depois de mortas? Essa pode ser uma sugestão, não acha?


      Dillan falou em voz baixa:


     - Como você tem certeza de que não é aqui que ele deve estar, Karen? Ou eu, por sinal?


     Encarei-o.


     - Porque a coisa não funciona assim, Dillan. Talvez eu não saiba muito sobre esse negócio de mediação, mas disso eu sei. Esta é a terra dos vivos. Você, meu pai e aquela dona que esteve aqui há um minuto não pertencem a este lugar.


     O motivo para estarem presos aqui é porque há alguma coisa errada.


     - Ah. Sei.


     Mas ele não sabia. Eu sabia que ele não sabia.


     - Você não pode dizer que está feliz aqui - falei. – Você não pode dizer que gosta de estar preso neste quarto por cento e cinqüenta anos.
     - Não foi muito ruim - disse ele com um sorriso. – As coisas melhoraram recentemente.


     Eu não tinha certeza do que ele queria dizer com isso. E como tinha medo de minha voz ficar esganiçada de novo se perguntasse, preferi dizer:


     - Bem, sinto muito o meu pai ter ido atrás de você. Juro que eu não contei a ele.
     - Tudo bem, Karen - disse Dillan baixinho. - Eu gosto do seu pai. E ele só faz isso porque se preocupa com você.
     - Você acha? - Puxei a colcha. - Eu tenho minhas dúvidas. Acho que ele faz isso porque sabe que me chateia.


     Dillan, que estivera me olhando puxar a colcha de chenile, subitamente estendeu a mão e segurou meus dedos.
      Ele não deveria fazer isso. Bem, pelo menos eu vinha tentando lhe dizer que ele não deveria fazer isso. Talvez tenha me escapado da mente. Mas, de qualquer modo, ele não deveria fazer isso. Quero dizer, me tocar.
      Veja bem, apesar de Dillan ser um fantasma e ser capaz de atravessar paredes e desaparecer e reaparecer à vontade, ele ainda está... bem, ali. Pelo menos para mim. É isso que me torna - e ao padre Dom - diferente de todo mundo. Nós não somente podemos ver os fantasmas e falar com eles, também podemos senti-los - como se eles fossem qualquer pessoa. Qualquer pessoa viva, quero dizer.      Porque para mim e para o padre Dom os fantasmas são como qualquer pessoa, com sangue, entranhas, suor, mau hálito e sei lá o quê mais. A única diferença real é que eles meio que têm um brilho em volta - uma aura, acho que é como se chama.
     Ah, e eu já falei que um monte deles tem força sobre-humana? Em geral eu esqueço de dizer isso. É por isso que, na minha linha de trabalho, freqüentemente eu levo umas porradas feias. E também é por isso que fico meio pirada quando um deles - como Dillan estava fazendo naquela hora - me toca, ainda que de modo não agressivo.
     E quero dizer, sério, só porque, para mim, os fantasmas são tão reais quanto, digamos, Tad Beaumont, isso não significa que eu queira dançar agarradinha com eles nem nada.

     Bem, certo, no caso de Dillan, eu ia querer, só que você não acha que seria bem estranho dançar agarradinha com um fantasma? Qual é! Ninguém além de mim iria poder vê-lo. Eu iria falar: "Ah, deixe-me apresentar meu namorado", e não haveria ninguém ali. Que mico! Todo mundo ia achar que eu estava inventando o cara, que nem aquela dona naquele filme que eu vi no canal Lifetime, que inventou um filho extra.
     Além disso, eu tenho quase certeza de que Dillan não gosta de mim desse modo. Sabe, do modo de dançar agarradinho.
     O que infelizmente ele provou virando minhas mãos e segurando-as ao luar.


     - O que há de errado com os seus dedos?


     Olhei para eles. A erupção estava pior do que nunca. Ao luar eu parecia deformada, como se tivesse mãos de monstro.


     - Sumagre venenoso - falei amarga. - Você tem sorte de estar morto e não poder encostar nisto. Queima. Ninguém me falou disso, você sabe. Sobre o sumagre venenoso. Sobre palmeiras, claro, todo mundo disse que havia palmeiras, mas...
     - Você deveria tentar pôr um unguento de folhas de grindélia - interrompeu ele.
     - Ah, certo - falei conseguindo não parecer sarcástica demais.


     Ele franziu a testa para mim.


     - É uma planta com flores amarelas pequenas. Cresce no campo, Tem propriedades curativas, você sabe. Há algumas naquele morro atrás da casa.
     - Ah. Quer dizer aquele morro onde ficam todos os pés de sumagre venenoso?

     - Dizem que pólvora também funciona.
     - Ah. Sabe, Dillan, talvez você fique surpreso em saber que a medicina avançou além dos unguentos de plantas e pólvora no último século e meio.
     - Ótimo - disse ele, largando minhas mãos. - Foi só uma sugestão.
     - Bem. Obrigada. Mas vou colocar a fé na hidrocortisona.


     Ele me olhou durante um tempo. Acho que provavelmente estava pensando em como eu sou esquisita. Eu estava pensando em como era estranho o fato de que aquele cara tinha segurado minhas mãos escamosas, sumagrentas-venenosas. Ninguém mais aceitaria tocá-las, nem minha mãe. Mas Dillan não se incomodou.
     Mas afinal de contas, ele não iria pegar a doença.


     - Karen - disse ele finalmente.
     - O quê?
     - Vá com cuidado com essa mulher. A mulher que esteve aqui.


     Dei de ombros.


     - Certo.
     - Estou falando sério. Ela não é... ela não é quem você acha.
     - Eu sei quem ela é.


     Ele ficou surpreso. Tão surpreso que foi meio insultuoso.


     - Você sabe? Ela contou?


     - Bem, não exatamente. Mas você não precisa se preocupar. Eu estou com as coisas sob controle.
     - Não. - Ele se levantou da cama. - Não está, Karen. Você deve ter cuidado. Desta vez deve ouvir o seu pai.
     - Ah, certo - falei muito sarcástica. - Obrigada. Você acha que poderia ser mais assustador com isso? Tipo será que você podia babar sangue ou alguma coisa assim?


     Acho que talvez eu tenha sido um pouco sarcástica demais, porque em vez de responder ele simplesmente desapareceu.
     Fantasmas. Não agüentam uma brincadeira.

A Mediadora/O Arcano Nove - Capitulo 4

     Quase morri de susto.

     - Meu Deus, papai. - Fechei a porta da geladeira com força. - Eu já disse para não fazer isso.


     Meu pai - ou o fantasma do meu pai, devo dizer - estava encostado na bancada da cozinha, com os braços cruzados no peito. Parecia presunçoso. Ele sempre parece presunçoso quando consegue se materializar pelas minhas costas e me matar de susto.


     - Então - disse ele, tão casualmente como se estivéssemos falando de sanduíches numa lanchonete. - Como vão as coisas, moça?


     Olhei-o irritada. Meu pai continuava exatamente como quando fazia suas visitas-surpresa ao nosso apartamento no Brooklyn. Estava usando a roupa com a qual tinha morrido, calça de moletom cinza e uma camisa azul onde estava escrito Homeport, Menemsha, Frutos do Mar Frescos o Ano Inteiro.


     - Papai. Onde você esteve? E o que está fazendo aqui? Não deveria estar assombrando os novos inquilinos do nosso apartamento no Brooklyn?
     - Eles são uns chatos. Dois yuppies. Queijo de cabra e cabernet sauvignon, é só disso que falam. Pensei em ver como você e sua mãe estavam se virando. - Ele estava espiando pelo passa-pratos que Andy havia instalado ao atualizar a cozinha estilo 1850 quando tinha comprado a casa junto com mamãe.
     - É ele? - perguntou meu pai. - O cara com o... O que é aquilo, afinal?
     - É uma quesadilla. E sim, é ele. - Agarrei o braço do meu pai e o arrastei até a ilha de instrumentos no centro, de modo que não conseguisse vê-los mais. Tinha de falar sussurrando para garantir que ninguém entreouvisse. - É por isso que você está aqui? Para espionar mamãe e o novo marido dela?
     - Não - disse meu pai, parecendo indignado. - Eu tenho um recado para você. Mas admito que queria dar uma passada e verificar como são as coisas, garantir que ele é suficientemente bom para ela. Esse tal de Andy.


     Olhei-o zangada.


     - Papai, acho que a gente já falou isso. Você deveria ir em frente, lembra?
Ele balançou a cabeça, tentando fazer sua cara de cachorrinho triste, achando que isso poderia me fazer recuar.
     - Eu tentei, Karen - falou pesaroso. - Tentei mesmo. Mas não posso.


     Encarei-o cética. Será que já mencionei que, na vida, meu pai tinha sido advogado criminologista, como sua mãe? Ele era um ator quase tão bom quanto Lassie. Podia fazer cara de cachorrinho triste como ninguém.


     - Por que, papai? O que está segurando você? Mamãe está feliz. Juro que está. Isto basta para dar vontade de vomitar, mas está feliz demais. E eu estou indo bem, verdade. Então o que está segurando você aqui?


     Ele deu um suspiro triste.


     - Você diz que está bem, Karen. Mas não está feliz.
     - Ah, pelo amor de Deus. Não vem com essa de novo. Sabe o que me deixaria feliz, papai? Você ir em frente. Isso me faria feliz. Você não pode passar sua pós-vida me seguindo e se preocupando comigo.
     - Por quê?
     - Porque - sibilei com os dentes trincados - você vai me deixar maluca.


     Ele piscou tristonho.


     - Você não me ama mais, é isso, moça? Certo. Captei a dica. Talvez eu vá assombrar vovó um tempo. Ela não é tão divertida porque não pode me ver, mas talvez se eu chacoalhar algumas portas...
     - Papai! - Olhei por cima do ombro para garantir que ninguém estivesse ouvindo. - Olha. Qual é o recado?
     - Recado? - Ele piscou, depois disse: - Ah, é. O recado. - De repente ele ficou sério. - Eu soube que você tentou contatar um homem hoje.


     Olhei-o de soslaio, cheia de suspeitas.


     - Red Beaumont. É, tentei. E daí?
     - Esse não é um cara com quem você queira mexer, Karen.
     - Hã-hã. E por quê?
     - Não posso dizer por quê. Só tenha cuidado.


     Encarei-o. Puxa, realmente. Até que ponto uma pessoa pode ser irritante?


     - Obrigada pelo aviso enigmático, papai. Isso realmente ajuda.
     - Desculpe, Karen. De verdade. Mas você sabe como essas coisas são. Eu não tenho a história toda, só... Sensações. E minha sensação com relação a esse Beaumont é que você deveria ficar longe. Muito longe.
     - Bem, não posso fazer isso. Sinto muito. 
     - Karen, este não é um caso que você deva enfrentar sozinha.
     - Mas eu não estou sozinha, papai. Eu tenho... - Hesitei. Quase tinha dito Dillan.


     Você pode pensar que meu pai já soubesse dele. Quero dizer, se ele sabia sobre Red Beaumont, por que não saberia sobre Dillan?
     Mas aparentemente não sabia. Sobre Dillan quero dizer. Porque se soubesse, pode apostar que eu ficaria sabendo. Quero dizer, qual é, um cara que não sai do meu quarto? Os pais odeiam isso.
     Então falei:


     - Olha, eu tenho o padre Dominic.
     - Não. Ele também não é bom o bastante.


     Encarei-o, irritada.


     - Ei. O que você sabe sobre o padre Dom? Papai, você andou me espionando?


     Meu pai ficou sem jeito.


     - A palavra espionar tem conotações muito negativas. Eu só estava dando uma conferida em você, só isso. Você pode culpar um homem por querer ver como sua filhinha está?
     - Ver como eu estou? Papai, até que ponto você anda vendo como eu estou?
     - Bem, vou lhe dizer uma coisa. Eu não estou empolgado com esse tal de Dillan.
     - Papai!
     - Bem, o que você quer que eu diga? - Meu pai abriu os braços num gesto do tipo "então me processe". - O sujeito está praticamente morando com você. Não é certo. Quero dizer, você é uma garota muito nova.
     - Ele é falecido, papai, lembra? Minha virtude não corre perigo.
     Infelizmente.
     - Mas como você vai trocar de roupa com um rapaz no quarto? - Meu pai, como sempre, tinha ido direto ao ponto. - Não gosto disso. E vou trocar uma ou duas palavrinhas com ele. Enquanto isso você vai ficar longe desse tal de Sr. Red. Entendeu?


     Balancei a cabeça.


     - Papai, você não entende. Dillan e eu pensamos em tudo. Eu não...
     - Eu falei sério, Karen.


     Quando meu pai me chamava de Karen, estava pegando pesado. Revirei os olhos.


     - Certo, pai. Mas quanto ao Dillan... Por favor, não diga nada a ele. Ele passou muito aperto, sabe? Quero dizer, ele praticamente morreu antes de realmente ter chance de viver.
     - Ei - disse meu pai, dando um dos seus grandes sorrisos inocentes. - Eu já deixei você na mão algum dia, querida?


     Já, eu quis dizer. Muitas vezes. Onde ele estava, por exemplo, no mês passado quando eu fiquei tão nervosa por estar me mudando para outro estado, começando numa escola nova, vivendo com um monte de gente que eu mal conhecia? Onde ele estava na semana passada, quando um dos seus colegas tentou me matar? E onde estava na noite de sábado quando eu esbarrei naquele sumagre venenoso?
     Mas não falei o que queria. Em vez disso falei o que achei que devia. É isso que a gente faz com membros da família.


     - Não, papai. Você nunca me deixou na mão.


     Ele me deu um grande abraço e desapareceu tão abruptamente quanto havia surgido. Eu estava calmamente colocando cereal numa tigela quando mamãe entrou na cozinha e acendeu a luz.


     - Querida? - disse ela parecendo preocupada. - Você está bem?
     - Claro, mamãe. - Enfiei um pouco de cereal na boca. - Por quê?
     - Eu achei... - Mamãe estava me espiando curiosamente. - Querida, eu pensei ter ouvido você dizer... Hmm... Bem, eu pensei ter ouvido você falando com... Você disse a palavra pai?


     Mastiguei. Eu estava totalmente acostumada a esse tipo de coisa.


     - Eu falei "ai". Fui provar o leite e tomei um susto, acho que ele está azedo.


     Minha mãe pareceu imensamente aliviada. O negócio é que ela me pegou falando com papai mais vezes do que eu consigo contar. Ela provavelmente me acha um caso de hospício. Lá em Nova York ela costumava me mandar ao seu terapeuta, que lhe disse que eu não era um caso de hospício, só uma adolescente. Cara, eu dei trabalho ao velho doutor Mendelsohn, vou te contar.
     Mas tinha de sentir pena de mamãe, de certa forma. Quero dizer, ela é uma figura legal e não merece ter uma filha mediadora. Eu sei que sempre fui meio um desapontamento para ela. Quando fiz quatorze anos ela me deu minha própria linha telefônica, achando que tantos garotos iriam ligar para mim que seus amigos nunca poderiam fazer contato. Dá para imaginar como ficou frustrada quando ninguém, a não ser minha melhor amiga Gina, ligava para a linha particular, e geralmente só para me contar sobre os encontros que ela vinha tendo. Os garotos do meu antigo bairro nunca se interessavam muito em me convidar para sair.


     - Bem - disse mamãe, animada. - Se o leite está azedo, acho que você não tem opção além de experimentar uma quesadilla de Andy.
     - Fantástico - gemi. - Mamãe, você sabe que aqui é maio o ano inteiro. A gente não pode virar uma porca no inverno como fazia lá em casa.


     Minha mãe suspirou, meio triste.


     - Você realmente odeia tanto isso aqui, querida?


     Olhei-a como se ela fosse maluca, para variar.


     - O que você quer dizer? Por que acha que eu odeio isso aqui?
     - Você. Você acabou de falar do Brooklyn como "lá em casa".
     - Bem - falei, sem graça. - Isso não significa que eu odeie este lugar. Só não me sinto em casa ainda.
     - De que você precisa para se sentir? - Minha mãe empurrou meu cabelo para longe dos olhos. - O que eu posso fazer para que você se sinta em casa?
     - Meu Deus, mamãe - falei, saindo de baixo dos dedos dela. - Nada, tudo bem. Eu vou me acostumar. Só me dê uma chance.


     Mas mamãe não estava engolindo.


     - Você sente falta de Gina, não é? Você não fez nenhum amigo realmente íntimo aqui, eu notei. Pelo menos não como Gina. Você gostaria, se ela viesse fazer uma visita?


     Eu não podia imaginar Gina, com suas calças de couro, piercing na língua e trancinhas de aplique em Carmel, Califórnia, onde usar conjunto de bermuda caqui e suéter é praticamente uma lei obrigatória.


     - Acho que seria legal - falei.


     Mas não parecia muito provável. Os pais de Gina não têm muito dinheiro, de modo que não teriam como mandá-la para a Califórnia assim, de uma hora para a outra. Mas eu gostaria de ver Gina diante de Kelly Prescott. Tinha certeza de que os apliques de cabelo iriam voar.
     Mais tarde, depois do jantar, do kickboxing e do dever de casa, com uma quesadilla coagulando no estômago, decidi, apesar dos avisos de meu pai, abordar o problema do Red uma última vez antes de ir dormir. Eu tinha conseguido o telefone da casa de Tad Beaumont - que não constava da lista, claro - do modo mais desonesto possível: no celular de Kelly Prescott, que eu tinha pedido emprestado durante a reunião do diretório fingindo que ia ligar para saber sobre os consertos na estátua do padre Serra. O celular de Kelly tinha agenda e eu peguei o número de Tad antes de devolver a ela.
     Ei, é um serviço sujo, mas alguém tem de fazê-lo.
     Eu tinha esquecido de levar em conta, claro, o fato de que Tad, e não seu pai, poderia atender. O que aconteceu depois do segundo toque.


     - Alô? - disse ele.


     Reconheci a voz instantaneamente. Era a mesma voz macia que tinha acariciado meu rosto na festa da piscina.
     Certo, vou admitir. Entrei em pânico. Fiz o que qualquer garota americana com sangue nas veias faria na mesma situação.
     Desliguei.
     Claro, não pensei que ele tinha um identificador de chamadas. Assim, quando o telefone tocou alguns segundos depois, presumi que era Cee Cee, que tinha prometido ligar com as respostas do nosso dever de geometria - eu tinha ficado meio atrasada, com todo o negócio de mediação que vinha fazendo... Não que essa fosse a desculpa que dei a Cee Cee, claro - por isso atendi.


     - Alô? - disse aquela mesma voz macia em meu ouvido. - Você ligou para mim agorinha mesmo?


     Um monte de palavrões me passou em alta velocidade pela cabeça. Em voz alta, entretanto, só disse:


     - Ah. Talvez. Mas por engano. Desculpe.
     - Espera. - Não sei como ele sabia que eu estava para desligar. - Sua voz parece familiar. Eu conheço você? Meu nome é Tad. Tad Beaumont.
     - Não - falei. - Não faço idéia. Tenho de ir, desculpe.


     Desliguei e falei mais um monte de palavrões, dessa vez em voz alta. Por que não pedi para falar com o pai dele? Por que eu fui uma idiota tão grande? O padre Dom estava certo. Eu era um fracasso como mediadora. Um fracasso enorme. Era capaz de exorcizar espíritos malignos sem problema. Mas quando se tratava de lidar com os vivos, era o pior malogro do mundo.
     Esse fato penetrou ainda mais fundo na minha cabeça quando, umas quatro horas depois, fui acordada de novo por um grito de gelar o sangue.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A Mediadora/O Arcano nove - Capitulo 3

     Por acaso descobri facilmente quem ele era. Só precisei perguntar na hora do almoço se alguém conhecia um cara chamado Red.
     Em geral não é tão fácil assim. Nem vou contar sobre a quantidade de catálogos telefônicos que revirei, as horas que passei na internet. Para não falar das desculpas esfarrapadas que tive de dar à minha mãe, tentando explicar as contas de telefone que produzi tentando conseguir informações.


     - Desculpe, mamãe. Eu realmente tinha de descobrir se havia alguma loja, num raio de oitenta quilômetros, que vendesse sapatos Manolo Blahnik...


     Mas dessa vez foi tão fácil que quase me fez pensar: hey, talvez esse negócio de mediadora não seja tão ruim.
     Isso, claro, naquela hora. Eu ainda não tinha achado Red.


     - Alguém conhece um cara chamado Red? - perguntei ao pessoal com quem eu tinha começado a almoçar e com quem achava que continuaria almoçando regularmente.


     - É claro - disse Adam. - O nosso velho amigo Rédia, a larva solitária.


     - Não é Red de Rédia - eu disse. - Esse é só Red mesmo.


     - Talvez já seja adulto. Talvez more na área.

     - Red Beaumont - disse Cee Cee. Ela estava comendo pudim num copo plástico. Uma gaivota grande e gorda se empoleirava a menos de trinta centímetros de distância, olhando a colher a cada vez que Cee Cee a mergulhava no copo e depois levava aos lábios. A Academia da Missão não tem lanchonete. A gente come do lado de fora todo dia - até, aparentemente, em pleno inverno. Mas o inverno daqui não era como o de Nova York, claro. Aqui em Carmel fazia uma temperatura agradável de vinte e um graus e havia sol do lado de fora. Na minha cidade, segundo o Canal do Tempo, tinha nevado quinze centímetros.


     Eu estava na Califórnia há quase três semanas, mas até agora não tinha chovido nem uma vez. Eu ainda estava para descobrir onde a gente comeria se chovesse na hora do almoço.
     Eu já havia aprendido do modo mais difícil o que acontece se a gente alimenta as gaivotas.


     - Thaddeus Beaumont é um empreendedor imobiliário.


     - Cee Cee terminou o pudim e começou a comer uma banana que tirou de um saco de papel que estava ao seu lado no banco. Cee Cee nunca compra lanches na escola. Ela tem uma coisa com 
comida industrializada.

     Cee Cee continuou, enquanto descascava a banana:

     - Os amigos o chamam de Red. Não pergunte por que, já que ele não tem cabelos ruivos. Mas por que você quer saber?


     Essa era sempre a parte complicada. Sabe, a parte do "por que você quer saber". Porque o fato é que, afora o padre Dom, ninguém sabe sobre mim. Quero dizer, sobre o negócio de mediadora. Nem Cee Cee, nem Adam. Nem mesmo minha mãe. Mestre, meu irmão adotivo mais novo, suspeita, mas não sabe. Nem tudo.
     Minha melhor amiga, Gina, lá do Brooklyn, provavelmente foi quem chegou mais perto de deduzir e isso apenas porque, por acaso, estava presente quando madame Zara, uma taróloga que a Gina me obrigou a consultar, me olhou chocada e disse:


     - Você fala com os mortos.


     Gina achou maneiro. Só que nunca soube - não de verdade - o que isso significava. Porque o que isso significa, claro, é que eu nunca durmo o suficiente, tenho machucados que não posso explicar, provocados por pessoas que ninguém mais pode ver e, ah, claro, não posso trocar de roupa no meu quarto porque o fantasma de um caubói morto há cento e cinqüenta anos pode me ver nua.


     - Alguma pergunta?


    Para Cee Cee eu apenas disse:


    - Ah, é só uma coisa que eu ouvi na TV. - Não era tão difícil mentir aos amigos. Mas mentir para minha mãe, isso era meio brabo.


     - Esse não era o nome daquele cara com quem você dançou na festa da Kelly? - perguntou Adam. - Você lembra, Karen. Tad, o corcunda com dentes faltando e um chulé de matar? Depois você me procurou, jogou os braços em volta de mim e implorou que eu me casasse com você para ser protegida dele pelo resto da vida.


     - Ah, é - falei. - Ele mesmo.


     - É o pai dele - disse Cee Cee. Cee Cee sabe de tudo no mundo porque é editora (e redatora e fotógrafa) do Notícias da Missão, o jornal da escola. - Tad Beaumont é o filho único de Red Beaumont.


     - Ahá - falei. Então fez um pouco mais de sentido. Quero dizer, por que a mulher morta me 
procurou. Obviamente ela sentiu uma ligação com Red através do filho dele.

     - Ahá o quê? - Cee Cee ficou interessada. Mas Cee Cee sempre fica interessada. Ela é como uma esponja, só que em vez de água absorve fatos. - Não diga, você ficou caidinha por aquele gato filho dele. Quero dizer, qual é a do cara? Ele nem perguntou o seu nome.

     Era verdade. Eu nem tinha notado, também. Mas Cee Cee estava certa. Tad nem perguntou meu nome. Ainda bem que eu não estava interessada nele.


     - Eu ouvi coisas ruins sobre Tad Beaumont - disse Adam, balançando a cabeça. - Quero dizer, além de andar por aí carregando o gêmeo não digerido nas entranhas, bem, há aquele tique facial embaraçoso, controlado somente por fortes doses de Prozac. E você sabe o que o Prozac faz com a libido dos caras...


     - Como é a Sra. Beaumont? - perguntei.


     - Não existe Sra. Beaumont - disse Cee Cee.


     Adam suspirou.


     - Produto do divórcio - disse ele. - Pobre Tad. Não é de espantar que ele tenha tantos problemas para assumir compromissos. Ouvi dizer que ele costuma namorar três, quatro garotas ao mesmo tempo. Mas talvez isso seja por causa do vício sexual. Ouvi dizer que há um grupo de ajuda para isso.


     Cee Cee o ignorou.


     - Acho que ela morreu há alguns anos.


     - Ah. - Será que o fantasma que tinha aparecido
 no meu quarto poderia ser a esposa falecida do Sr. Beaumont? Parecia valer uma tentativa. - Alguém tem uma moeda de vinte e cinco centavos?

     - Por quê? - quis saber Adam.

     - Tenho de dar um telefonema.


     Quatro pessoas da nossa turma do almoço estenderam celulares. Sério. Eu escolhi o que tinha a quantidade menos intimidante de botões, depois disquei para Informações e perguntei o número de Thaddeus Beaumont. A telefonista disse que o único número que tinha era das Indústrias Beaumont. Eu falei:


     - Tudo bem.


     Caminhando até o trepa-trepa das crianças - a Academia da Missão tem turmas do jardim de infância até o terceiro ano, e o playground onde a gente almoça tem até caixa de areia, se bem que eu seria incapaz de encostar nela, com as gaivotas e tudo - para ter um pouco de privacidade, falei à recepcionista que atendeu com um alegre "Indústrias Beaumont, em que posso ser útil?" que precisava falar com o Sr. Beaumont.


    - Quem eu devo anunciar, por favor?


     Pensei nisso. Eu poderia ter dito "Alguém que sabe o que realmente aconteceu com a mulher dele".      Mas o negócio é que eu não sabia realmente. Nem sabia por que, exatamente, suspeitava que sua esposa - se aquela mulher fosse mesmo sua esposa - estava mentindo e que na verdade Red a tinha matado. É meio deprimente, se a gente pensa nisso. Quero dizer, eu sendo tão nova e tão cínica e cheia de suspeitas.
     Por isso falei:


     - Karen Simon. - E me senti na pior. - Por que um homem importante como Red Beaumont atenderia a um telefonema de Karen Simon? Ele nem me conhecia.


     Sem dúvida, a recepcionista me tirou da espera um segundo depois e disse:


     - O Sr. Beaumont está atendendo a outro telefonema neste momento. Posso pegar um recado?


     - Ah... - falei, pensando rápido. - É. Diga a ele... diga a ele que estou ligando do jornal da Academia da Missão Junipero Serra. Eu sou repórter, e nós estamos fazendo uma matéria sobre... as dez pessoas mais influentes do Condado de Salinas. - Eu lhe dei o número da minha casa. - E pode dizer para não ligar antes das três? Por que eu só saio da escola a essa hora.


     Assim que a recepcionista ficou sabendo que eu era uma garota, ficou ainda mais gentil.


     - Claro, querida - disse ela numa voz açucarada. - Vou dizer ao Sr. Beaumont. Até loguinho.


     Desliguei. O até loguinho me irritou. O Sr. Beaumont ficaria bem surpreso quando ligasse para mim e entrasse em contato com a Rainha do Povo das Trevas, em vez de Lois Lane.
     Mas o negócio é que Thadeus "Red" Beaumont nem se incomodou em ligar de volta. Acho que, quando você é zilionário, ser considerado uma das dez pessoas mais influentes por um jornaleco de escola não é lá grande coisa. Eu fiquei em casa o dia inteiro depois das aulas e ninguém ligou. Pelo menos não para mim.
     Não sei por que achei que seria tão fácil. Acho que tinha sido levada a um falso sentimento de segurança por ter conseguido descobrir o nome dele com tanta facilidade.
     Estava sentada no meu quarto, admirando meu sumagre venenoso aos raios do sol poente, quando mamãe me chamou para o jantar.
     O jantar é um negócio muito importante no lar dos Ackerman. Basicamente minha mãe já havia me informado que me mataria se eu não aparecesse para o jantar toda noite, a não ser que tivesse combinado a ausência antecipadamente com ela. Seu novo marido, Andy, além de tremendo carpinteiro, é um cozinheiro muito bom e vinha fazendo grandes jantares toda noite para os filhos desde que eles ganharam dentes, ou sei lá o quê. E cafés da manhã com panquecas nos domingos também. Posso dizer que o cheiro de xarope de bordo de manhã me dá ânsias de vômito? O que há de errado, pergunto eu, num pãozinho simples com queijo cremoso, e talvez um salmãozinho defumado com uma fatia de limão e umas alcaparras?


     - Aqui está ela - disse minha mãe quando eu entrei arrastando os pés na cozinha com as roupas pós-escola: jeans rasgados, camiseta de seda preta e botas de motociclista.


     São roupas assim que fizeram meus irmãos adotivos suspeitarem que eu faça parte de uma gangue, apesar de minhas negativas insistentes.
     Mamãe fez um grande alarde vindo até mim e me beijando no topo da cabeça. Isso é porque desde que mamãe conheceu Andy Ackerman - ou Andy Jeitoso, como ele é conhecido no programa de trabalhos manuais que apresenta na TV a cabo - casou com ele, me obrigando a me mudar para a Califórnia para morar com ele e os três filhos, ela está incrível e nojentamente feliz.
     Vou lhe contar, entre isso e o xarope de bordo, eu não sei o que é mais repulsivo.


     - Olá, querida - disse mamãe, embolando todo o meu cabelo. - Como foi o seu dia?


     - Ah. Ótimo.


     Ela não ouviu o sarcasmo na minha voz. O sarcasmo era completamente desperdiçado com mamãe desde que ela conheceu Andy.


     - E como foi a reunião do diretório estudantil?


     - Sacal.


     Isso foi Dunga, tentando ser engraçado imitando minha voz.


     - O que quer dizer com sacal? - Andy, lá no fogão, estava virando quesadillas que chiavam na grelha que ele havia posto sobre os queimadores. - O que exatamente foi sacal?


     - É, Brad - falei. - O que foi sacal? Você e Debbie Mancuso estavam brincando com os pés debaixo da mesa, ou algo do tipo?


     Dunga ficou todo vermelho. Ele faz luta-livre. Seu pescoço é grosso como minha coxa. Quando seu rosto fica vermelho, o pescoço fica mais vermelho ainda. É lindo de ver.


     - De que você está falando? - perguntou Dunga. – Eu nem gosto de Debbie Man
cuso.

     - Claro que não - falei. - É por isso que se sentou junto dela no almoço hoje.

     O pescoço de Dunga ficou cor de sangue.


     - David! - Andy, perto do fogão, começou a berrar subitamente. - Jake! Andem, vocês dois. O jantar está pronto.


     Os outros dois filhos de Andy, Soneca e Mestre, vieram arrastando os pés. Bem, Soneca veio arrastando os pés. Mestre veio saltando. Mestre era o único filho de Andy que eu conseguia me lembrar de chamar pelo nome de verdade. Isso porque, com seu cabelo ruivo e aquelas orelhas que se projetam de verdade da cabeça, ele parecia um personagem de desenho animado. Além disso, era muito inteligente e nele eu via um bocado de ajuda potencial para meu dever de casa, mesmo estando três séries à sua frente.
     Soneca, por outro lado, não tem qualquer utilidade para mim, a não ser como um cara com quem eu posso pegar carona para ir e vir da escola. Aos dezoito anos Soneca estava em posse integral da carteira de motorista e de um veículo, um Rambler velho e esculhambado, com partida falha, mas a gente botava a vida nas mãos dele ao pegar carona, porque ele quase nunca estava totalmente acordado, devido ao trabalho noturno como entregador de pizza. Ele vinha economizando, como gostava de nos lembrar nas poucas ocasiões em que falava, para comprar um Camaro. E, pelo que dava para ver, aquele Camaro era a única coisa em que ele pensava.


     - Ela sentou perto de mim - gritou Dunga. - Eu não gosto de Debbie Mancuso.


     - Abandone a mentira - aconselhei enquanto passava por ele. Minha mãe tinha me dado uma tigela de molho para levar à mesa. - Eu só espero - sussurrei em seu ouvido enquanto passava - que vocês dois tenham feito sexo seguro naquela noite na festa da piscina de Kelly. Eu ainda não estou preparada para ser tia adotiva.


     - Cala a boca - gritou Dunga. - Sua... sua... Mão de Micose!


     Pus uma das minhas mãos de micose no coração e fingi que ele tinha me esfaqueado ali.


     - Nossa - falei. - Isso realmente dói. Zombar das reações alérgicas das pessoas é uma coisa tão incrivelmente incisiva e inteligente!


     - É, panaca - disse Soneca a Dunga, enquanto passava por ele. - O que há com você e a gata selvagem, hein?


     Dunga, totalmente perdido, começou a parecer desesperado.


     - Debbie Mancuso e eu não estamos transando! – gritou ele.


     Vi mamãe e papai trocarem um olhar rápido, perplexo.


     - Eu realmente espero que não - disse Mestre, o irmãozinho de Dunga, quando passou lepidamente por nós. - Mas se estão, Brad, espero que você esteja usando camisinha. Ainda que uma camisinha de látex de boa qualidade tenha uma taxa de falhas de cerca de dois por cento quando usada segundo as recomendações, tipicamente a média de problemas está mais próxima de doze por cento. Isso faz com que elas sejam apenas cerca de oitenta e cinco por cento eficazes para impedir a gravidez. Se for usada com espermicida, a eficácia aumenta dramaticamente. E as camisinhas são nossa melhor defesa (ainda que não tão boa, claro, quanto à abstenção) contra algumas DSTs, inclusive o HIV.


     Todo mundo na cozinha - mamãe, Andy, Dunga, Soneca e eu - encaramos Mestre, que, como eu mencionei antes, tem doze anos.


     - Você tem tempo livre demais - falei, por fim.


     Mestre deu de ombros.


     - É bom ser informado. Ainda que eu não seja sexualmente ativo atualmente, espero me tornar num futuro próximo. - Ele assentiu para o fogão. - Papai, suas chimichangas, ou sei lá o quê, estão pegando fogo.


     Enquanto Andy pulava para apagar o fogo do queijo, minha mãe ficou ali parada, aparentemente sem encontrar palavras pela primeira vez na vida.


     - Eu... - disse ela. - Eu... Ah. Minha.


     Dunga não deixaria Mestre ter a última palavra.


     - Eu não estou - repetiu ele - transando com...


     - Ah, Brad - disse Soneca. - Corta essa, tá?


     Dunga não estava mentindo, claro. Eu mesma tinha visto que ele só tinha jogado hóquei de língua. A paixão feroz de Dunga e Debbie era a causa de eu estar cuidando da mão com creme de cortisona. Mas qual é a diversão de se ter irmãos adotivos se a gente não pode torturá-los? Não que eu fosse contar a alguém o que tinha visto, claro. Eu sou muitas coisas, mas não sou dedo-duro. Mas não me entenda mal: eu gostaria que Dunga fosse apanhado saindo de casa durante o castigo. Quero dizer, não acho que ele tenha aprendido nada com a "punição". Ele provavelmente ainda iria se referir ao meu amigo Adam como veado, na próxima vez em que o visse.
     Só que não faria isso na minha presença. Porque, mesmo ele sendo lutador de luta livre, eu chutaria a bunda de Dunga daqui até a avenida Clinton, minha rua lá no Brooklin.
     Mas não seria eu a dedurá-lo. Não era uma coisa de classe, sabe?


     - E você - perguntou mamãe com um sorriso – achou que a reunião do diretório foi tão sacal quanto Brad, Karen?


     Sentei-me no meu lugar à mesa de jantar. Assim que fiz isso, Max, o cachorro dos Ackerman, veio farejando e pôs a cabeça no meu colo. Eu o empurrei. Ele pôs a cabeça de volta. Mesmo eu morando aqui há menos de um mês, Max já havia deduzido que eu sou a pessoa mais provável de deixar restos no prato.
     Claro, as horas das refeições eram as únicas em que Max prestava atenção em mim. No resto do tempo me evitava como se eu fosse a peste. Evitava especialmente meu quarto. Os animais, diferentemente dos seres humanos, são muito perceptivos com relação aos fenômenos paranormais e Max sentia Dillan e por isso permanecia longe das partes da casa em que ele normalmente gostava de ficar.


     - Claro - falei, tomando um gole d'água. - Foi sacal.


     - E o que foi decidido na reunião? - quis saber minha mãe.


     - Eu fiz uma moção para cancelar o baile da primavera - falei. - Desculpe, Brad. Sei como você estava contando em acompanhar Debbie à festa.


     Dunga me lançou um olhar sujo do outro lado da mesa.


     - Mas por que você iria querer cancelar o baile da primavera, Karen? - perguntou mamãe.


     - Porque é um desperdício estúpido de nossas verbas muito limitadas.


     - Mas um baile! - protestou minha mãe. - Eu adorava ir aos bailes de escola quando tinha sua idade.


      Isso, eu queria dizer, é porque você sempre tinha um namorado, mamãe. Porque você era bonita, legal, e os garotos gostavam de você. Não era uma esquisita patológica como eu, com mãos de micose e uma capacidade secreta de conversar com os mortos.
     Em vez disso falei:


     - Bem, a senhora estaria em minoria na minha turma. Minha moção foi apoiada e aprovada por vinte e sete votos.


     - Bem - disse mamãe. - O que vocês vão fazer com o dinheiro, então?


     - Gastar com cerveja - falei, lançando um olhar para Dunga.


     - Nem brinque com isso - disse mamãe, séria. - Eu me preocupo muito com a quantidade de bebida que os adolescentes consomem aqui. - Minha mãe é repórter de televisão. Ela faz o noticiário matutino de uma estação local perto de Monterey. Sua melhor qualidade é parecer séria enquanto lê num teleprompter sobre acidentes medonhos.


     - Eu não gosto. Não é como em Nova York. Lá, nenhum dos seus amigos dirigia, por isso eu não me importava tanto. Mas aqui... bem, todo mundo dirige.


     - Menos Keren - disse Dunga. Ele parecia achar que era seu dever jogar na minha cara o fato de que, mesmo tendo dezesseis anos, ainda não tenho carteira. Nem mesmo permissão para fazer aulas. Como se dirigir fosse a coisa mais importante do mundo. Como se meu tempo já não estivesse totalmente ocupado com a escola, minha recente nomeação como vice-presidente da turma do segundo ano na Academia da Missão e salvar as almas perdidas dos desmortos.


     - O que vocês vão fazer realmente com o dinheiro? - perguntou mamãe.


     Dei de ombros.


     - Nós temos de levantar dinheiro para substituir a estátua do fundador, o padre Junipero Serra, antes da visita do arcebispo no mês que vem.


     - Ah. Claro. A estátua que foi vandalizada.


     Vandalizada. É, certo. É o que todo mundo dizia, claro.
     Mas aquela estátua não foi vandalizada. O que aconteceu foi que um fantasma que estava tentando me matar cortou a cabeça da estátua e tentou usá-la como bola de boliche.
     E eu devia ser o pino.


     - Quesadillas - disse Andy, vindo à mesa com um monte delas numa bandeja. - Aproveitem enquanto estão quentes.


     O que se seguiu foi um caos tão grande que eu só pude ficar sentada, com a cabeça de Max ainda no colo, e assistir em horror. Quando terminou, todas as quesadillas tinham sumido, mas meu prato e o da minha mãe ainda estavam vazios. Depois de um tempo Andy notou isso, pousou o garfo e disse, irritado:


     - Ei, pessoal! Vocês já pensaram em esperar para pegar a segunda porção depois de todo mundo na mesa pegar a primeira?


     Aparentemente não. Soneca, Dunga e Mestre olharam sem graça para seus pratos.


     - Desculpe - disse Mestre, estendendo o prato, com queijo e molho pingando, na direção de mamãe. - Pode pegar um pouco do meu.


     Minha mãe pareceu sentir um certo nojo.


     - Não, obrigada, David. Vou ficar só com a salada, acho.


     - Karen - disse Andy, pondo seu guardanapo na mesa. - Vou fazer a quesadilla com mais queijo que você já...


     Empurrei a cabeça de Max para fora do caminho e estav
a de pé antes que Andy pudesse sair de sua cadeira.

     - Sabe de uma coisa? - falei. - Não se incomode. Realmente acho que só vou comer um pouco de cereal.

     Andy ficou magoado.


     - Karen, não é problema...


     - Não, sério - falei. - Eu ia treinar kickboxing com minha fita de vídeo depois e muito queijo ia acabar pesando.


     - Mas - disse Andy - eu vou fazer mais de qualquer modo...


     Ele estava tão patético que eu não tive opção além de dizer:


     - Bem, vou experimentar uma. Mas por enquanto termine o que está no seu prato, e eu vou pegar um pouco de cereal.


     Enquanto eu estava falando, ia recuando da sala. Assim que cheguei em segurança à cozinha, com Max nos meus calcanhares - ele não era idiota, sabia que não conseguiria uma migalha daqueles caras na sala: eu era o ingresso de Max para comida de gente - peguei uma caixa de cereal e uma tigela, depois abri a geladeira para pegar um pouco de leite. Foi então que ouvi uma voz suave sussurrar atrás de mim:


     - Karen.


     Girei. Não precisei ver Max saindo de fininho da cozinha com o rabo entre as pernas para saber que estava na presença de outro membro daquele clube exclusivo conhecido como os Desmortos.