quinta-feira, 14 de março de 2013

A Mediadora/A Terra das sombras - Capitulo 17

     Meu despertador tocou à meia-noite. Eu o desliguei, bati palmas para acender a luz, rolei na cama e fiquei olhando para o dossel lá em cima.
     Isso mesmo. Tinha chegado o dia D. Ou dia E, no caso.
     Eu estava tão cansada depois do jantar que sabia que nunca conseguiria se não tirasse uma soneca. Disse à minha mãe que ia lá para cima fazer o dever de casa, e que depois ia me deitar para tirar uma soneca. Quando a gente morava no Brooklin, não teria o menor problema. Minha mãe me teria deixado sossegada, exatamente como eu pedia. Mas na casa dos Ackerman a expressão "quero ficar sozinha" aparentemente não significava absolutamente nada. E não porque a casa estivesse cheia de fantasmas por todo lado. Não, para variar, eram os vivos que ficavam me perturbando.
     Primeiro foi o Dunga. Quando me sentei para desfrutar de mais um jantar gastronômico imaculadamente preparado por meu padrasto, pairava uma certa dúvida, pois no fim das contas eu só havia chegado em casa depois das seis. Como sempre, chegou a hora do "onde você estava?" da minha mãe (muito embora eu me tivesse dado ao trabalho de deixar aquele bilhete para ela). Depois o Andy veio com o seu "foi divertido?". E logo em seguida tive de ouvir um "com quem você estava?" logo de quem? Do Mestre. E quando eu informei que estivera com Adam McTavish e Cee Cee Webb, Dunga fez uma careta de nojo e lançou, sem parar de mastigar sua almôndega:

     - Caramba! Os esquisitos da turma.

     Andy interveio:

     - Ei, veja como fala.

     - Puxa, pai - insistiu Dunga. - Uma é uma albina superesquisita e o outro é boiola.

     Isto lhe valeu um espetacular cascudo do pai, que também o deixou de castigo por uma semana. Com isto, não pude deixar de lembrar ao Dunga mais tarde, quando estávamos tirando a mesa, que ele não poderia ir à festa na piscina de Kelly Prescott, para a qual, por sinal, tinha sido convidado graças a mim, a rainha dos esquisitos.

     - Pena mesmo, meu chapa - disse eu, dando um tapinha de solidariedade na bochecha do Dunga.

     Ele empurrou a minha mão.

     - Ah, é? - foi dizendo. - Bom, pelo menos ninguém vai me chamar de bicha amanhã.

     - Ora, ora, meu benzinho - continuei, beliscando a mesma bochecha. - Você nunca vai precisar se preocupar de ser chamado disso. Só te xingam de coisas muito piores.

     Ele voltou a agarrar minha mão, aparentemente tão furioso que ficou sem fala por algum tempo.

     - Prometa que nunca vai mudar - pedi. - Você é mesmo um barato exatamente do seu jeito...

     Dunga me chamou de um nome muito feio, no exato momento em que seu pai entrava na cozinha com o resto da salada.
     Andy deu-lhe mais uma semana de castigo e depois mandou-o para o quarto. Para mostrar como tinha ficado aborrecido, Dunga botou para tocar os Beastie Boys tão alto que eu não conseguia dormir, pelo menos até que o Andy voltou a interferir, tomando as caixas de som. De repente tudo ficou um enorme sossego e eu já estava pegando no sono quando alguém bateu na minha porta. Era o Mestre.

     - Hmm - começou ele, olhando nervosamente para a escuridão do meu quarto, o quarto "mal-assombrado" da casa. - Será que a hora é apropriada para... falar das coisas que eu andei descobrindo? Quer dizer, sobre a casa... E as pessoas que morreram aqui...

     - Pessoas? No plural?

     - Com certeza - prosseguiu Mestre. - Consegui encontrar uma quantidade incrível de documentos sobre os crimes que foram cometidos nesta casa, em muitos casos crimes de homicídio em todos os graus. Como era uma estalagem, havia sempre muitos moradores temporários, boa parte dos quais estava voltando para casa depois de fazer fortuna na corrida do ouro no norte do estado. Muitos foram assassinados enquanto dormiam e tiveram seu ouro roubado, possivelmente pelos próprios donos do estabelecimento, segundo certas versões, porém mais provavelmente por outros moradores...

     Temendo que estivesse para ouvir que o Dillan tinha morrido exatamente dessa maneira e nada interessada em ficar sabendo mais sobre as causas de sua morte, especialmente se ele estivesse ali por perto para ouvir também, eu o interrompi:

     - Escuta só, Mestre... quer dizer, Dave. Acho que até hoje ainda não consegui me recuperar da viagem, de modo que vou tentar tirar uma soneca das boas. Será que não podemos falar disso amanhã no colégio? Quem sabe almoçamos juntos...

     Mestre arregalou os olhos,

     - Está falando sério? Vai querer almoçar comigo? Fiquei olhando para ele.

     - Mas claro! Por quê? Existe alguma regra proibindo que o pessoal do segundo grau almoce com o pessoal do primeiro?

     - Não - respondeu ele. - É só que... nunca acontece.

     - Bom, pois eu vou - insisti. - Tudo certo? Você compra as bebidas e eu pago a sobremesa.

     - Beleza! - exclamou Mestre, que voltou para seu quarto como se eu tivesse prometido que amanhã lhe daria de presente o trono da Inglaterra.

     Eu já estava quase começando a dormir de novo, quando ouvi baterem na porta novamente. Dessa vez, quando abri, lá estava o Soneca, parecendo mais desperto que eu, para variar.

     - Olha só - começou ele. - Não quero saber se você vai usar o carro de noite, mas vai botando as chaves lá no gancho, OK?

     Eu fiquei olhando para ele.

     - Eu não tenho saído com o seu carro à noite, So... quer dizer, Jake.

     - Seja lá o que for - insistiu ele. - Apenas trate de deixar as chaves onde as encontrou. E não seria nada mau se você contribuísse de vez em quando com a gasolina...

     Eu respondi bem devagar, para ele entender:

     - Eu não tenho saído com o seu carro à noite, Jake.

     - Ninguém tem nada a ver com o uso que você faz do seu tempo - insistiu Soneca. - Não acho um barato viver em gangues, mas cada um sabe da sua vida. Apenas trate de botar minhas chaves no lugar, onde eu possa encontrá-las.

     Entendi que não tinha sentido ficar discutindo, concordei e fechei a porta.
     Depois do quê, finalmente consegui umas boas horas de sono. Não cheguei propriamente a acordar me sentindo nova (talvez eu pudesse dormir por mais um ano), mas de qualquer maneira estava me sentindo um pouco melhor.
     Pelo menos, melhor o suficiente para ir acertar os fundilhos de algum fantasma.
     Algumas horas antes eu havia juntado tudo de que ia precisar. Minha mochila estava cheia de velas, pincéis, um recipiente para sangue de galinha, que eu havia comprado no açougueiro aonde fizera o Adam me levar antes de me deixar em casa, e vários outros apetrechos indispensáveis para a realização de um bom exorcismo à brasileira. Estava completamente preparada para ir em frente. Só faltava calçar meus tênis, e lá ia eu.
     Só que, naturalmente, o Dillan tinha de aparecer exatamente no momento em que eu estava pulando do telhado da varanda.

      - Tudo bem - fui dizendo, enquanto me endireitava, com os pés doendo um pouco, apesar de ter aterrissado em terra fofa. - Vamos deixar uma coisa bem clara logo de saída. Você não vai dar as caras lá na Missão esta noite. Entendido? Se aparecer por lá, vai se arrepender, e não será pouco.

     Dillan estava recostado num dos pinheiros gigantes do nosso jardim. Simplesmente recostado, os braços cruzados, me olhando como se eu fosse alguma atração especial ou coisa parecida.

     - Estou falando sério - continuei. - Não vai ser uma noite nada boa para fantasmas. Nada boa mesmo. De modo que se eu fosse você não dava as caras por lá.

     Deu para perceber que o Dillan estava sorrindo. A lua não era tão forte como na noite anterior, mas ainda assim havia luar e dava para eu ver que as curvas na ponta de seus lábios voltavam-se para cima, e não para baixo.

     - Karen - disse ele. - O que você está querendo?

     - Nada - respondi, caminhando em direção à garagem e apanhando a bicicleta de dez marchas. - Preciso apenas acertar uma coisas. 

     Dillan aproximou-se de mim enquanto eu botava o capacete.

     - Com a Heather? - perguntou, polidamente.

     - Isso aí. Com a Heather. Sei que as coisas saíram do controle da última vez, mas dessa vez vai ser diferente...

     - Como, exatamente?

     Eu passei a perna por cima daquela barra cretina que eles põem nas bicicletas para garotos e me posicionei bem no alto da rua, com os dedos firmes no guidão.

     - Tudo bem - disse então. - Vou te dar uma colher. Vou fazer um exorcismo.

     Sua mão direita voou e agarrou firme a barra entre minhas mãos.

     - Um o quê?! - fez ele, com uma voz completamente destituída do bom humor que a caracterizava até então.

     Eu engoli em seco. Tudo bem, eu não estava assim tão confiante quanto queria parecer. Na realidade, estava praticamente tremendo em cima de meus All-Star. Mas que mais podia eu fazer? Eu tinha de deter a Heather antes que ela fizesse mal a alguém mais. E seria mesmo sensacional se todo mundo simplesmente me ajudasse nisso.

     - Você não pode me ajudar - fui dizendo, completamente fria. - Vê se fica afastado de lá esta noite, Dillan, caso contrário poderá ser exorcizado também.

     - Você perdeu o juízo - disse ele, com o mesmo tom indiferente que eu tinha passado a usar.

     - Provavelmente - reconheci, desanimada. 

     - Ela vai matá-la - insistiu Dillan. - Não está entendendo? É isso que ela quer.

     - Não - respondi, sacudindo a cabeça. - Ela não quer me matar. Primeiro ela quer matar todo mundo que é importante para mim. Só depois é que quer me matar.

     Eu funguei. Não sei por quê, mas meu nariz estava escorrendo. Provavelmente porque estava muito frio. Eu não entendia como aquelas palmeiras conseguiam ficar vivas. Estava fazendo uns cinco graus lá fora,

     - Mas ela não vai conseguir, entendeu? - continuei. - Eu vou impedi-la. Agora solte a minha bicicleta.

     Dillan sacudiu a cabeça.

     - Não, não. Nem mesmo você seria capaz de fazer uma coisa tão idiota.

     - Nem mesmo eu? - retruquei, meio chateada, mesmo sem querer. - Muito obrigada.

     Ele me ignorou.

     - O padre está sabendo disso, Karen? Você contou ao padre?

     - Hmm, claro. Ele está sabendo. Ele, hmm... vai se encontrar comigo lá.

     - O padre vai se encontrar com você?

     - Sim, claro, claro - disse eu, rindo meio nervosa. - Você não está pensando que eu ia tentar uma coisa dessas sozinha, não é mesmo? Puxa, eu não sou tão burra assim, por mais que você pense.

     Ele já estava segurando a bicicleta com menos firmeza.

     - Bem, se o padre vai estar lá... 

     - Claro, claro. Com toda certeza.

     Ele voltou a segurar firme. A outra mão do Dillan veio vindo na minha direção, e um longo dedo ficou sacudindo bem no meu nariz enquanto ele dizia:

     - Você está mentindo, não está? O padre não vai estar lá coisa nenhuma. Ela o machucou, não é mesmo, hoje de manhã? Foi o que eu pensei. Ela o matou?

     Eu balancei a cabeça. De repente fiquei sem vontade de falar. Era como se tivesse alguma coisa na minha garganta, uma coisa me machucando.

     - Por isso é que você está com tanta raiva - disse Dillan, pensativo. - Eu devia ter imaginado. Você está indo lá para acertar contas com ela pelo que ela fez com o padre.

     - E se for isto? - explodi. - Ela bem que merece!

     Ele abaixou o dedo, agarrando o guidão da minha bicicleta com as duas mãos. E posso dizer que ele era bem fortão para um cara que está morto. Eu não conseguia me mexer com ele agarrado daquele jeito.

     - Karen - disse ele. - Não é assim que se fazem as coisas. Não foi para isto que você recebeu este extraordinário dom, não para fazer coisas assim...

     - Dom?! - exclamei eu, apertando os dentes para não cair na gargalhada. - É isso aí, Dillan. Eu recebi mesmo um dom dos mais preciosos. E sabe o que mais? Estou de saco cheio. Mas estou mesmo. Eu achei que vindo para cá poderia começar tudo de novo. Achei que as coisas poderiam ser diferentes. E sabe o que mais? São diferentes mesmo. São muito piores! 

     - Karen...

     - O que você acha que eu devo fazer, Dillan? Amar a Heather pelo que ela fez? Abraçar seu espírito ferido? Sinto muito, mas é impossível. Talvez o padre Dom fosse capaz, mas eu não e ele está fora da jogada, de modo que vamos fazer as coisas do meu jeito. Vou me livrar dela, e se você quer o seu próprio bem, Dillan, fica fora dessa.

     Dei um tranco bem forte no pedal e ao mesmo tempo agarrei o guidão com toda força. Foi tão inesperado para o Dillan, que ele largou a bicicleta involuntariamente. Um segundo depois eu estava a caminho, projetando cascalho para trás com a roda traseira e cobrindo Dillan de poeira. Enquanto ia descendo pela rua, ainda pude ouvi-lo dizer um monte de coisas em espanhol. Provavelmente estava xingando. E com toda certeza a palavra hermosa não foi pronunciada.
     Grande parte da paisagem que ia percorrendo ao descer eu não consegui ver. O vento estava tão frio que ficavam saltando lágrimas pelas minhas bochechas e até o meu cabelo. Felizmente não havia muito trânsito, de modo que quando eu atravessei o cruzamento, não tinha importância que não estivesse vendo muita coisa. De qualquer maneira, os carros iam parando para eu passar.
     Eu sabia que dessa vez seria mais difícil entrar no colégio. Eles deviam ter aumentado a segurança por causa do que acontecera na noite anterior. Mais segurança? A verdade é que bastava terem providenciado alguma segurança. 
     E foi o que fizeram. Havia um carro da polícia no estacionamento, com as luzes apagadas. Simplesmente lá, parado, com o luar refletido nos vidros das janelas fechadas. O motorista - com certeza um novato, para ser encarregado de uma missão tão chata - provavelmente estava ouvindo música, embora de onde eu estava, junto ao portão do estacionamento, não desse para ouvir nada.
     De modo que eu ia precisar encontrar uma outra maneira de entrar. Sem problema. Escondi a bicicleta num arbusto e calmamente fui dar uma volta ao redor do colégio.
     Não é muito fácil impedir que uma garota de 16 anos razoavelmente esbelta entre num prédio. Eu sou um bocado flexível. E também tenho juntas bem elásticas. Não vou contar aqui como é que acabei conseguindo entrar, pois não quero que as autoridades escolares descubram (nunca se sabe, pode ser que eu precise fazer tudo de novo algum dia), mas digamos que se alguém é encarregado de fazer um portão é melhor ter certeza de que ele chegou mesmo até o chão. Aquele vão entre o cimento e o ponto onde começa a base do portão é exatamente o espaço de que uma garota como eu precisa para se insinuar.
     Lá dentro do estacionamento, as coisas pareciam bem diferentes da noite anterior - e muito mais aterrorizantes. Todos os holofotes estavam apagados (o que não me parecia exatamente uma boa medida de segurança, mas é claro que a Heather podia perfeitamente ter arrebentado todas as lâmpadas), de modo que toda a área estava escura e cheia de sombras assustadoras. A fonte também estava desligada. 
     Dessa vez, só dava para ouvir os grilos. Só grilos cantando nos hibiscos. Nada de errado com os grilos. Os grilos são amigos.
     Não havia o menor sinal da Heather. Não havia qualquer sinal de ninguém. O que era bom.
     Fui caminhando com o máximo de cuidado (o que não era tão difícil com os meus tênis) até o armário que eu estava... compartilhando com a Heather. Aí me ajoelhei e abri minha mochila.
     Primeiro, acendi as velas. Precisava delas para enxergar ao redor. Segurando um acendedor de grelha de churrasco que havia trazido contra a base de uma das velas, derreti e pinguei um pouco de cera no piso e firmei a vela naquela goma. Repeti a operação com todas as outras velas até formar um círculo luminoso à minha frente. Abri então a tampa do recipiente com o sangue de galinha.
     Não vou descrever aqui a forma que eu tinha de desenhar no centro do círculo de velas para que o exorcismo desse certo. Exorcismo é o tipo da coisa que a gente não deve tentar fazer em casa, por pior que seja a assombração. E só deve ser confiado a uma profissional como eu. Afinal, ninguém ia querer machucar algum fantasma inocente que estivesse só passando por ali. Tipo exorcizar a vovó ou coisa do gênero...
     E também não é recomendável que as pessoas comecem a mexer com macumba, e por isto não vou repetir aqui a invocação que tive de fazer em português mesmo. Digamos apenas que mergulhei meu pincel no sangue de galinha e fiz o desenho adequado, emitindo as palavras exigidas. Foi só quando retirei a fotografia da Heather da mochila que notei que os grilos haviam parado de cantar.

     - Que diabos você acha que está fazendo? - disse ela, bem atrás do meu ombro.

     Eu não respondi. Botei a foto no centro da forma que eu havia pintado. Ela ficou bem iluminada pelas velas. Heather aproximou-se mais.

     - Onde foi que arranjou esta foto minha?

     Eu me limitei a pronunciar as palavras que tinha de dizer em português. O que pareceu irritar ainda mais a Heather.
     Bom, parece mesmo que temos de reconhecer que tudo irritava a Heather.

     - O que você pensa que está fazendo? - perguntou ela de novo. - Que língua é essa que está falando? E para que esta pintura vermelha?

     Como eu não respondesse, a Heather começou a ficar ainda mais abusada - o que parecia ser a sua especialidade.

     - Olha aqui, sua vaca - foi dizendo, botando a mão no meu ombro e me puxando nada delicadamente. - Está me ouvindo?

     Eu interrompi o ritual.

     - Pode me fazer um favor, Heather? - perguntei. - Quer ficar bem ali perto do seu retrato?
Heather sacudiu a cabeça e seus longos cabelos loiros reluziram à luz das velas.

     - O que está acontecendo com você? - perguntou ela com grosseria. - Está bêbada por acaso? Não vou ficar em lugar nenhum. Isso aí... isso é sangue? 

     Eu dei de ombros. Ela continuava com a mão no meu ombro.

     - Sim - respondi. - Mas não se preocupe. É só sangue de galinha.

     - Sangue de galinha? - repetiu Heather com uma careta. - Chocante. Está brincando comigo? Para que isto?

     - Para te ajudar - respondi. - Para te ajudar a ir embora.

     Heather apertou os dentes. As portas dos armários começaram a sacudir. Mas não muito. Só o suficiente para que eu ficasse sabendo que a Heather não estava nada satisfeita.

     - Pensei que tinha deixado bem claro ontem à noite que eu não vou a lugar nenhum - disse ela.

     - Você disse que queria ir embora.

     Exatamente - respondeu ela, enquanto os segredos das trancas dos armários começavam a girar ruidosamente. - Para minha antiga vida.

     - Pois eu descobri uma maneira...

     As portas começaram a parecer tambores, de tanto que sacudiam.

     - Esquece - respondeu ela.

     - Esquece, não: lembra. Você só precisa ficar de pé aqui, no meio dessas velas, perto do seu retrato.

     Nem precisei insistir. Num segundo, ela estava exatamente onde eu queria que estivesse.

     - Tem certeza de que isto vai funcionar? - quis saber, toda excitada.

     - É melhor que funcione, caso contrário terei desperdiçado minha cota de velas e sangue de galinha - respondi. 

     - E as coisas vão voltar a ser exatamente como eram? Quer dizer, como eram antes de eu morrer?

     - Claro - respondi. Fiquei me perguntando se era o caso de me sentir culpada por estar mentindo. Eu não me sentia nem um pouco culpada. Só sentia um grande alívio. Tinha sido tudo tão fácil. - Agora fique calada um pouco para eu dizer as palavras.

     Ela estava louca para colaborar. Então eu disse as palavras
     E disse as palavras.
     E disse as palavras de novo.
     Eu já estava começando a me preocupar, achando que nada ia acontecer, quando a luz das velas começou a tremer. E não estava passando nenhum vento.

     - Não está acontecendo nada - queixou-se a Heather, mas eu mandei que ela se calasse.

     As chamas voltaram a tremer. De repente, acima da cabeça da Heather, onde devia estar o telhado da galeria, apareceu um buraco cheio de gases vermelhos dando voltas. Eu fiquei olhando para aquele buraco.

     - Heather, é melhor você fechar os olhos - disse então. Ela prontamente obedeceu.

     - Por quê? Está funcionando?

     - É - disse eu. - Está funcionando sim.

     Heather disse alguma coisa do tipo "legal", mas não pude ouvir bem. Não dava para ouvir direito porque o gás vermelho que ficava girando no ar, e que parecia mesmo uma fumaça, estava começando a sair do buraco e fazia uma espécie de ronco. Logo depois, longos anéis daquela coisa começaram a envolver a Heather, diáfanos como uma bruma. Só que ela não sabia, pois estava de olhos fechados.

     - Estou ouvindo alguma coisa - disse ela. - Está acontecendo?

     - Acima de sua cabeça, o buraco havia aumentado muito. Dava para ver uns relâmpagos lá dentro.

     Não parecia o lugar mais atraente do mundo. Não estou dizendo que eu tinha aberto uma porta para o inferno ou coisa parecida (pelo menos era o que eu esperava), mas certamente se tratava de uma dimensão que não era a nossa, e com toda franqueza não parecia um lugar muito agradável para visitar, muito menos para viver por toda a eternidade.

     - Só mais um minutinho e você chega lá - disse eu, enquanto aumentava o número de anéis vermelhos de fumaça ao redor daquele corpinho de animadora de torcida.

     Heather ajeitou os cabelos longos.

     - Oh meu Deus! - fez ela. - Mal posso esperar. A primeira coisa que vou fazer é ir ao hospital pedir desculpas ao Bryce. Você não acha uma boa idéia, Karen?

     Eu respondi, enquanto o trovão aumentava e os relâmpagos ficavam mais freqüentes:

     - Claro, é uma grande idéia.

      - Tomara que a minha mãe não tenha jogado minhas roupas fora - prosseguiu a Heather. - Só porque eu estava morta. Você acha que a minha mãe pode ter jogado fora as minhas roupas, Karen? Acha mesmo? - insistiu ela, abrindo os olhos.

     Eu gritei: 

     - Fique de olhos fechados!

     Mas já era tarde. Ela já tinha visto. Puxa vida, ela tinha visto. Ficou meio segundo olhando para aqueles anéis ao seu redor e começou a berrar.
     E não estava berrando de medo, não senhor. A Heather não estava com medo. Estava furiosa. Para valer.

     - Sua vaca! - gritou. - Você não está me mandando de volta! Não mesmo! Está me mandando embora!

     E de repente, no momento em que o trovão começava a ficar ainda mais forte, a Heather saiu do círculo.
     Assim mesmo. Ela simplesmente deu um passo para fora. Como se não tivesse a menor importância. Como no jogo da amarelinha. Aqueles anéis de fumaça que estavam ao redor dela simplesmente desapareceram. Sumiram como fumaça. E o buraco acima da cabeça de Heather se fechou.
     Bom, vou ter de confessar que fiquei muito danada. Eu tinha tido um trabalho enorme para conseguir aquilo.

     - Ah, não - resmunguei, aproximando-me da Heather e agarrando-a, pelo pescoço mesmo. - Volte já para lá. Volte para lá imediatamente - disse, com os dentes trincados.

     Heather limitou-se a rir. Estava presa numa gravata, e ainda ria.
     Por trás dela, no entanto, as portas dos armários começaram a se sacudir de novo. Mais alto que nunca.

     - Você é uma mulher morta - disse ela. - Você já está morta, Jilian. E sabe o que mais? Vou dar um jeito para que os outros também se juntem a você. Todos aqueles seus amigos esquisitos. E aquele seu meio-irmão também. 

     Eu apertei ainda mais o seu pescoço.

     - Não creio. Acho mesmo é que você vai voltar para onde estava e desaparecer como um fantasma bem bonzinho.

     Ela riu de novo.

     - Vamos ver isto, então - desafiou, com os olhinhos azuis brilhando enlouquecidamente.

     Bem, se era assim que ela queria...
     Dei-lhe um murro daqueles com o punho direito. E antes que ela conseguisse se recuperar, acertei-lhe um outro com a esquerda. Se ela sentiu os golpes, não deixou transparecer. Não, não é verdade. Eu sei que ela sentiu os golpes porque as portas dos armários de repente começaram a abrir e fechar. Fechar não é bem a palavra. Começaram a abrir e a bater, mas a bater com muita força mesmo, sacudindo toda a galeria.
     Não estou brincando. A galeria toda estava indo e vindo, como se o piso fosse de ondas do mar. As grossas pilastras de madeira que sustentavam o telhado arqueado se sacudiam naquele chão que as mantivera firmes e fortes por quase trezentos anos. Trezentos anos de terremotos, incêndios e inundações, e bastava o fantasma de uma animadora de torcida para que elas tremessem nas bases.
     Como vocês podem ver, essa história de mediação não tem nada de divertido.
     E de repente eram os dedos dela que estavam ao redor da minha garganta. Não sei como foi possível. Acho que eu devo ter ficado perturbada com aquele tremor todo. A coisa estava muito esquisita. Eu a agarrei pelos braços e comecei a tentar empurrá-la de volta para o círculo de velas. Ao mesmo tempo, murmurava a invocação em português sem tirar o olho dos caibros que ondulavam lá em cima, na esperança de que o buraco voltasse a se abrir para a terra das sombras.

     - Cala a boca! - gritou a Heather quando ouviu o que eu estava dizendo. - Cala essa boca! Você não vai me mandar embora! Meu lugar é aqui! É muito mais o meu lugar do que o seu!

     Eu ficava repetindo as palavras. E continuava a empurrá-la.

     - Quem você pensa que é? - gritava Heather com o rosto vermelho de raiva. Com o canto dos olhos, eu vi um vaso de gerânios levitar alguns centímetros acima da balaustrada de pedra em que se encontrava. - Você não é ninguém! Você só está no colégio há dois dias. Dois dias! Está pensando que pode ir chegando e mudar tudo? Acha que pode simplesmente ir tomando o meu lugar? Quem você pensa que é?

     Eu chutei uma perna e, agarrando bem os braços dela, dei-lhe uma rasteira e ambas caímos no chão. O vaso de flores foi atrás, não porque tivéssemos esbarrado nele, mas porque a Heather o atirou contra mim. Eu me abaixei no último instante, e o pesado vaso de argila se espatifou contra os armários, numa explosão de terra, gerânios e cacos de barro. Agarrei a Heather pelos longos e lindos cabelos louros. Não era um gesto dos mais elegantes, mas também não tinha sido muito elegante da parte dela atirar gerânios em mim. 

     Ela começou a berrar de novo, chutando e se retorcendo como uma enguia, enquanto eu a arrastava e ao mesmo tempo a empurrava em direção ao círculo de velas. Ela havia começado a fazer outros objetos levitarem. As trancas saltaram das portas dos armários e voaram em minha direção como pequenos discos voadores. Depois surgiu um tornado, sugando tudo que estava dentro dos armários para a alameda, de modo que apostilas e fichários voavam para cima de mim de todas as direções. Eu fiquei com a cabeça abaixada, mas não perdi o controle dela quando o livro de trigonometria de alguém me atingiu em cheio no ombro. E ficava repetindo as palavras que certamente haveriam de abrir de novo aquele buraco.

     - Por que você está fazendo isto? - berrou Heather. - Por que simplesmente não me deixa em paz?

     - Porque não.

     Eu estava arranhada, sem fôlego, pingando de suor, só pensando em largar ela ali mesmo, dar meia-volta e ir para casa, jogar-me na cama e dormir por um milhão de anos.
     Mas não podia.
     Então o que fiz foi dar-lhe um murro bem no peito, mandando-a de volta para o meio do círculo de velas. E no exato momento em que ela tropeçou na foto que havia dado ao Bryce, o buraco que aparecera acima de sua cabeça voltou a se abrir. Desta vez a fumaça vermelha fechou-se em torno dela como um sufocante e espesso cobertor de lã. Ela não ia se soltar de novo. Não com aquela facilidade. 
     A fumaça vermelha a seu redor era tão espessa que eu já não podia vê-la, mas certamente a ouvia. Seus gritos dariam para despertar os mortos - só que ela era a única morta ali, naturalmente. Trovões ribombavam acima de sua cabeça. Lá dentro do buraco que voltara a se abrir, eu julgava estar vendo estrelas brilharem.

     - Por quê? - berrava Heather. - Por que está fazendo isto comigo?

     - Porque eu sou a mediadora - respondi.

     E de repente duas coisas aconteceram quase simultaneamente.
     A fumaça vermelha que envolvia a Heather começou a ser sugada para o buraco que girava em espiral, levando-a consigo.
     E os poderosos pilares que sustentavam a galeria partiram-se em dois como se fossem de gesso.
     E foi aí que a galeria desmoronou em cima de mim.

A Mediadora/A Terra das Sombras - Capitulo 16

     - Nem pensar - disse padre Dominic.

     - Padre - tentei argumentar. - Não vejo outra saída. Nós sabemos perfeitamente que ela não irá por vontade própria. E ela é perigosa demais para ficar por aí perambulando indefinidamente. Acho que vamos precisar dar um empurrão.


     Padre Dominic tirou os olhos de mim e ficou com o olhar perdido num ponto do teto.


     - Não é para isto que estamos aqui, pessoas como você e eu, Karen - disse ele com a voz mais triste que eu jamais ouvira. - Nós somos as sentinelas dos portões do Além. Somos nós que ajudamos a guiar as almas perdidas para seu destino final. E não houve um só espírito ajudado por mim que não tivesse passado pelo portão por vontade própria...


     Isso aí. E se a gente fechar os olhos na noite de Natal, Papai Noel vai aparecer. Devia ser muito bom, pensei, ver o mundo pelos olhos do padre Dom. Ficava parecendo um lugar muito legal. Muito melhor que o mundo no qual eu vivia há dezesseis anos.


     - Certo - disse eu. - Bom, não vejo outro jeito.


     - Um exorcismo - murmurou padre Dominic, pronunciando a palavra como se fosse algo nojento.


     - Ouça - prossegui, começando a me arrepender de ter dito alguma coisa. - Acredite, não é um método que eu recomendo sempre. Mas não acho que tenhamos muita escolha. A Heather já não é um perigo apenas para o Bryce. - Eu não queria contar-lhe o que ela havia dito sobre o David. Já podia até vê-lo saltando da cama e berrando por um par de muletas. Mas como eu já tinha deixado escapar o que estava planejando, precisava mostrar a ele por que considerava necessária uma medida tão extrema. - Ela é um perigo para o colégio todo e precisa ser contida - disse então.


     Ele assentiu com a cabeça.


     - Sim, sim, você tem razão. Mas Karen, você tem de prometer que vai esperar que eu tenha alta. Conversei com a médica, e ela disse que pode me dar alta já na sexta-feira. Com isto, teremos tempo suficiente para pesquisar a metodologia apropriada... - ele deu uma olhada para a mesinha-de-cabeceira. - Quer me dar aquela Bíblia ali, Karen? Quem sabe não o encontramos aqui...


     Eu lhe entreguei a Bíblia.


     - Tenho plena convicção de que domino perfeitamente a coisa - disse eu. 


     Ele levantou os olhos e me fixou com aquele seu olharzinho triste de criança. Pena que já fosse tão velho, e ainda por cima padre. Fiquei me perguntando quantos corações ele não teria partido antes de encontrar sua vocação.


     - E como é que você pode dominar perfeitamente uma coisa complicada como um exorcismo católico romano? - quis saber ele.


     Eu me mexi, meio sem jeito.


     - Bem, eu não estava pretendendo usar exatamente a versão católica romana.


     - Existe alguma outra?


     - Mas claro! A maioria das religiões tem sua versão. Pessoalmente, prefiro a umbanda. É bem objetiva. Nada de sortilégios demorados ou coisas do gênero.


     Ele parecia estar sofrendo:


     - Macumba?


     - Isso mesmo. É o vodu brasileiro. Eu descobri na Internet. Só precisamos de um pouco de sangue de galinha e...


     - Maria Santíssima, mãe de Deus! - interrompeu padre Dominic, levando algum tempo para se recuperar e prosseguir: - Fora de questão. Heather Chambers era uma católica batizada e, apesar da causa de sua morte, merece um exorcismo católico, se não um enterro católico. No momento ela não tem grandes chances de ir para o Céu, devo reconhecer, mas posso garantir que pretendo fazer tudo para que tenha a oportunidade de cumprimentar São Pedro no portão.


     - Padre Dom - eu disse. - Realmente não acho que faça a menor diferença se ela tiver um exorcismo católico, brasileiro, pigmeu ou o que seja. A dura realidade é que se houver um Céu, não existe a menor possibilidade de que Heather Chambers vá para lá.


     Padre Dominic fez um muxoxo de desaprovação.


     - Karen , como pode dizer uma coisa dessas? Todo mundo tem alguma coisa de bom. Acho que até você é capaz de ver isso.


     - Até eu? Como assim, até eu?


     - Estou querendo dizer que até Karen Jilian, que pode ser muito dura com os outros, deve ser capaz de entender que até no ser humano mais cruel existe a flor do bem. Talvez um brotinho muito pequeno mesmo, carente de água e luz do sol, mas ainda assim uma flor.


     - Fiquei me perguntando que analgésicos estariam dando ao padre Dom. E disse:


     - Tudo bem então, padre. Só sei que, aonde quer que a Heather vá, não será para o Céu. Se é que existe um Céu...


      Ele sorriu para mim com tristeza.


     - Eu gostaria apenas, Karen, que você tivesse em matéria de fé no Senhor metade do que tem de coragem - disse. - Ouça-me um instante. Você não pode, simplesmente não pode tentar deter a Heather sozinha. Ficou perfeitamente claro que ela quase a matou na noite passada. Eu não conseguia acreditar quando cheguei e vi os estragos que ela tinha provocado. Você teve muita sorte de sair com vida. E pelo que aconteceu esta manhã também está claro, como você mesma diz, que ela está apenas acumulando forças. Seria uma burrice, uma burrice criminosa, se você tentasse de novo fazer alguma coisa sozinha.

     Eu sabia que ele tinha razão. Pior ainda, se eu levasse adiante aquela história de exorcismo, não poderia contar com a ajuda do Jesse, pois o exorcismo poderia muito bem mandá-lo de volta para o criador, juntinho com a Heather.


     - Além disso - prosseguiu padre Dominic -, não há qualquer motivo para se apressar, não é mesmo? Agora que ela já conseguiu mandar o Bryce para o hospital, não fará nenhuma outra tolice, pelo menos até ele voltar para o colégio. Parece que ele é a única pessoa contra a qual ela alimenta instintos assassinos...


     Eu não disse nada. E como poderia? O pobre infeliz parecia tão patético, deitado naquela cama... Eu não queria dar-lhe mais motivos de preocupação. Mas a verdade é que eu não poderia esperar que o padre Dom saísse do hospital. A Heather não estava brincando. A cada dia que passava, ela só ia ficando mais forte e mais perversa e mais cheia de ódio. Eu tinha de me livrar dela, e precisava ser logo.
     De modo que cometi algo que deve ser um pecado mortal. Menti para um padre.
     Ainda bem que eu não sou católica.


     - Não se preocupe, padre Dom - disse. - Vou esperar que o senhor se sinta melhor.


     Mas o padre Dominic não era nenhum bobo.


     - Prometa-me, Karen - insistiu.


     - Prometo. 


     Claro que eu tinha cruzado os dedos. Eu esperava que, se existisse um deus, isto servisse para neutralizar o pecado de mentir para um dos seus mais devotados servidores.


     - Deixe-me ver - murmurava padre Dominic. - Vamos precisar de água benta, naturalmente. Mas isto não é problema. E, naturalmente, de um crucifixo.


     Enquanto ele matutava sobre os itens necessários, Adam e Cee Cee entraram no quarto.


     - E aí, padre Dom? - foi dizendo o Adam. - O senhor está péssimo!


     Cee Cee cutucou-o com o cotovelo.


     - Adam - sussurrou ela, voltando-se com vivacidade para o padre. - Não dê bola para ele, padre Dom. Eu acho que o senhor parece ótimo. Parece mesmo, para quem quebrou um bocado de ossos...


     - Crianças! - fez padre Dominic, realmente contente por vê-los. - Mas que bom! Mas por que estão desperdiçando uma tarde bonita como esta para visitar um velho num hospital? Vocês deviam estar na praia curtindo o sol.


     - Na verdade estamos fazendo uma matéria sobre o acidente para as Notícias da Missão - informou Cee Cee. - Acabamos de entrevistar o monsenhor. É realmente uma pena essa história da visita do arcebispo e tudo mais, e a estátua do padre Serra sem cabeça...


     - Isso aí - fez o Adam. - Um horror mesmo.


     - Não faz mal - disse padre Dominic. - É o empenho e a preocupação de vocês que vão realmente impressionar o arcebispo. 


     - Amém - disse Adam, solene.


     Antes que uma de nós duas tivesse tempo de ralhar com o Adam por causa do sarcasmo, uma enfermeira entrou e comunicou a Cee Cee e a mim que tínhamos de sair porque ela ia dar banho de esponja no padre Dom.


     - Banho de esponja! - espantou-se o Adam enquanto caminhávamos para o carro. - No padre Dom dão banho de esponja, mas e eu, que realmente saberia apreciar uma coisa dessas, que é que me dão?...


     - Uma oportunidade de servir de motorista para as duas garotas mais bonitas de Carmel - adiantou-se Cee Cee.


     - Tá bom - concordou Adam, voltando-se para mim: - Não que você não seja a garota mais bonita de Carmel, Karen... Eu só estava querendo dizer... Bem, você sabe...


     - Sei - disse eu, sorrindo.


     - Puxa vida, banho de esponja! E você viu só aquela enfermeira? - continuou Adam, empurrando o encosto do banco do carona para a Cee Cee se esgueirar para o assento de trás. - Alguma coisa deve ter nessa história de ser padre. Talvez eu devesse me candidatar.


     Lá de trás, a Cee Cee respondeu:


     - Ninguém se candidata. É uma vocação. E você não ia gostar nada, Adam, pode crer. Padres não podem jogar Nintendo.


     Adam engoliu esta.


     - Talvez eu pudesse fundar uma nova ordem - disse ele, concentrado. - Como os franciscanos, só que seríamos a Ordem dos Felizardos. Nosso lema seria "Nota dez para todos, pizza para todo mundo". 


     Cee Cee interrompeu:


     - Cuidado com a gaivota!


     Nós estávamos na Rodovia Litorânea de Carmel. Pouco depois da mureta de pedra a nossa direita estava o Oceano Pacífico, brilhando como uma jóia à luz da gigantesca bola de fogo amarela do sol. Provavelmente eu o devia estar contemplando muito demoradamente (eu ainda não tinha me acostumado com sua presença constante), pois o Adam foi tratando de se enfiar com o carro numa vaga que acabava de ser deixada livre por um BMW. Eu fiquei olhando para ele interrogativamente, enquanto ele perguntava:


     - Você ainda não conseguiu parar para ficar olhando o pôr-do-sol?


     Saí do carro numa fração de segundo.
     Pouco depois, estava me perguntando como é que nunca tinha pensado antes em me mudar para a Califórnia. Sentada numa manta que o Adam tirou da mala do carro, observando os atletas correndo e os surfistas de fim de tarde, os cães correndo atrás de frisbees e os turistas com suas câmeras, estava me sentindo tão bem como não me sentia há muito tempo... Talvez fosse porque eu ainda estava num regime de dormir apenas quatro horas por noite. Talvez, simplesmente o cheiro da água do mar me estivesse deixando meio embriagada. Mas o fato é que estava me sentindo realmente em paz, como se fosse pela primeira vez na vida.
     O que não deixava de ser estranho, levando-se em conta que dentro de poucas horas eu estaria em luta contra as forças do Mal. 
     Até que essa hora chegasse, no entanto, decidi que ia curtir a vida. Voltei o rosto para o sol que se punha, sentindo os seus raios quentes na bochecha, e fiquei ouvindo o barulho das ondas, os gritos das gaivotas e a conversa de Cee Cee com o Adam.


     - Aí eu disse para ela, Claire, você já tem quase 40 anos. Se você e o Paul querem ter outro filho, é melhor andarem depressa. Vocês estão correndo contra o tempo - disse o Adam, bebendo um refrigerante que havia comprado numa lanchonete perto do lugar onde estacionamos. - Ela ficou dizendo que meu pai e ela não queriam que eu me sentisse ameaçado por um outro filho e eu respondi que não me sentia ameaçado por bebês. Sabe o que realmente me faz sentir ameaçado? Esses orangotangos que ficam tomando esteróides, do tipo Brad Ackerman, isto sim.


      Cee Cee lançou um olhar de advertência para Adam e depois olhou para mim:


     - E como você está se dando com seus meios-irmãos, Karen?


     Eu desviei meu olhar do sol.


     - Acho que bem - respondi. - Mas é verdade que o Dun... quer dizer, o Brad, toma esteróides?


     O Adam respondeu:


     - Eu não devia ter dito isto. Sinto muito. Tenho certeza de que ele não toma. Mas aqueles caras todos da equipe de luta-livre, eles realmente são de dar medo. E têm tanta raiva de gays... que dá para desconfiar de suas preferências sexuais. Eles todos pensam que eu sou gay, mas não sou exatamente eu que fico metido num colante agarrando as coxas de outros caras.


      Eu senti vontade de pedir desculpas em nome do meu meio-irmão e foi o que fiz, acrescentando:


     - Não estou tão certa assim de que ele seja gay. Outro dia ele ficou todo feliz quando a Kelly Prescott ligou para nos convidar para a festa em sua piscina no sábado.


     Adam assobiou e de repente Cee Cee perguntou:


     - Você não prefere algo melhor que esta manta? Quem sabe uma toalha de praia de caxemira?... É o tipo de toalha que a Kelly e o pessoal dela usam na praia.


     Eu fiquei piscando, percebendo que acabava de cometer uma gafe.


     - Ué, eu não sabia... Pensei que a Kelly também tinha convidado vocês. Achei que ela ia convidar todos os segundanistas.


     - Com certeza que não - disse Cee Cee, fungando. - Só os segundanistas com status, o que não é caso do Adam nem o meu.


     - Mas você é a editora do jornal do colégio - ponderei.


     - Certo - respondeu o Adam. - Traduza isto como a mesma coisa que bosta, e vai entender por que nunca fomos convidados para uma festa na piscina da princesa Kelly.


     Fiquei calada por um minuto, ouvindo as ondas. Mas acabei dizendo:


     - Não que eu estivesse pensando em ir...


     - Não mesmo? - e os olhos de Cee Cee se esbugalharam por trás dos óculos. 


     - Não. No início, porque eu tinha um encontro com o Bryce, que acabou sendo cancelado. Mas agora porque... bom, se vocês não forem, com quem eu vou conversar?
Cee Cee deitou-se na manta.


     - Karen - disse ela. - Você alguma vez pensou em ser vice-presidente da turma?Eu achei graça.
Espera aí, eu sou a mais nova da turma, lembra?


     - Isso aí - fez o Adam. - Mas você leva jeito. Vi que você tem alguma coisa de líder na maneira como acabou com a raça da Debbie Mancuso ontem. Os homens sempre admiram as garotas que parecem capazes de dar um murro na cara de outra garota a qualquer momento. É mais forte que nós. Talvez seja genético - concluiu ele, dando de ombros.


     - Certamente vou levar isto em consideração - disse eu, rindo. - Cheguei a ouvir um boato de que a Kelly pretendia gastar todo o orçamento da turma numa festa...


     - Exatamente - confirmou Cee Cee. - Ela faz isto todo ano. É aquela baboseira da dança da primavera. Um saco. Pelo menos para quem não está de namorado, não serve para nada. Não dá para fazer mais nada, só dançar.


     - Espera aí - atalhou Adam. - Lembra aquela vez em que a gente levou balões de água?


     - Bom, naquele ano foi divertido - reconheceu Cee Cee.


     - Eu estava pensando - interferi - que talvez fosse melhor uma coisa assim. Sabe como é. Um piquenique na praia. Talvez até dois... 


     - Isso mesmo! - exclamou o Adam. - Com fogueira! O meu lado piromaníaco sempre quis fazer uma fogueira na praia.


     Cee Cee concordou:


     - Exatamente! É exatamente o que a gente devia fazer. Karen, você tem de concorrer a vice-presidente!


     Santa virgem, mas o que foi que eu fiz? Eu não queria ser vice-presidente da turma de segundo ano! Não queria me envolver com essas coisas! Eu não tinha o menor espírito de comunidade, não tinha opinião sobre nada! Que diabos estava eu fazendo? Será que tinha perdido a cabeça?


     - Olha lá! - disse Adam de repente, apontando para o sol. - Lá vai ele.


     Enquanto ia desaparecendo no horizonte, a enorme bola alaranjada parecia estar mergulhando no mar. Não tinha nada respingando nem nenhuma fumaça, mas eu seria capaz de jurar que tinha ouvido o sol atingindo a superfície da água.


     - Lá vai o sol - cantou Cee Cee suavemente.


     - Lá lá lá lá lá - continuou o Adam.


     - Lá vai o sol - prossegui.


     Tudo bem, tenho de reconhecer que era meio infantil, ficar ali sentado cantando, enquanto o sol se punha. Mas também era divertido. Lá em Nova York, a gente costumava ficar sentado no parque vendo os policiais à paisana prenderem traficantes de drogas. Mas não dava para comparar com o prazer de cantar despreocupado na praia enquanto o sol se põe. 
Alguma coisa estranha estava acontecendo. E eu não sabia direito o que era.


     - Eu já sei. Tá legal - cantamos os três em uníssono.


     Estranhamente, naquele exato momento, eu realmente acreditei que seria assim. Que estaria tudo bem.
     E foi aí que me dei conta do que estava acontecendo.
     Eu estava me integrando. Eu, Karen Jilian, a mediadora. Pela primeira vez na vida eu estava me integrando com alguma coisa.
     E fiquei feliz. Realmente feliz. Naquele momento, eu realmente acreditava que tudo estaria bem.
     Mal sabia eu!...

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Oi Girls ! Eu to feliz pra caramba hoje ! Nem sei por qe , mas eu to .. Aé , lembrei por qe , eu estou apaixonada *----*
Nem sei oqe eu vo escrever aqi hoje , mas eu to com muita vontade de escrever ..
Deixa eu contar !! Isso eu to louquinha pra conta , eu e uma amiga minha da escola , a Beatriz , estamos escrevendo uma historia , muito massa a historia , é tipo o desenho avatar com um romance .. Quando agente ganhar um 10 eu vou postar o texto aqi pra vocs verem , na verdade eu nao sei qem vai ver por qe ninguem le meu blog , mas nem ligo ..
Xoxo gatas !