terça-feira, 13 de novembro de 2012

A Mediadora/A Terra das sombras - Capitulo 13

     Minha intenção, naturalmente, era acordar cedo e telefonar ao padre Dominic para avisá-lo sobre a Heather. Mas de boas intenções o inferno está cheio e vai ver eu não presto mesmo para nada, pois só fui acordar com minha mãe me sacudindo, e àquela altura já eram sete e meia e minha carona já estava indo embora.
     Ou pelo menos era o que eles achavam. Eles se atrasaram à beça quando o Soneca descobriu que tinha perdido as chaves do Rambler, de modo que deu tempo de eu me ar­rastar da cama e enfiar-me numa roupa qualquer - não me perguntem qual. Fui descendo a escada quase sem me agüentar, e parecia que alguém tinha batido várias vezes na minha cabeça com um saco de pedras enquanto o Mestre contava para todo mundo que a irmã Ernestine tinha avisa­do que se ele faltasse a mais uma formatura teria de repe­tir o ano.
     Foi aí que eu lembrei que as chaves do Rambler estavam no bolso da minha jaqueta de couro desde a noite anterior.
     Discretamente, fui subindo de novo a escada e fingi que tinha achado as chaves no patamar. O pessoal comemorou um pouco mas reclamou um bocado, pois o Soneca jurava que as tinha deixado penduradas no gancho da cozinha e não sabia como tinham ido parar no patamar.

     - Deve ter sido o fantasma do Dave - disse o Dunga, olhando de soslaio para o Mestre, que ficou totalmente sem graça.

     Então entramos no carro e fomos embora.
     Claro que estávamos atrasados. Na Academia da Missão Junipero Serra, a formatura começa às 8 horas em ponto. Nós chegamos uns dois minutos depois. Nessa formatura, que dura mais ou menos quinze minutos antes do início das aulas, é feita a chamada e são lidas comunicações aos alunos, enfileirados separadamente por sexo, os garotos de um lado e as garotas de outro, como se fôssemos missionários quacres ou algo assim. Quando nós chegamos, claro que a formatura já tinha começado. Eu pretendia passar agacha­da direto para o gabinete do padre Dominic, mas evidentemente não tive a menor chance. Irmã Ernestine nos apa­nhou em cheio e nos fulminou com um olhar furibundo até que cada um de nós entrasse em forma. Eu não estava ligando muito para o que irmã Ernestine anotava a meu respeito em seu caderninho negro, mas percebi que seria impossível chegar ao gabinete do diretor, por causa das fitas isolantes amarelas que impediam a passagem pelos arcos ao redor do pátio - e, naturalmente, por causa de todos aqueles guardas que estavam lá.
     Só posso deduzir que todos os padres e freiras e o pes­soal todo se levantou para as matinas, que é como eles chamam a primeira missa da manhã, e deram lá fora com a estátua do fundador da igreja sem cabeça, a fonte quase sem água nenhuma, o banco onde eu estivera sentada com­pletamente retorcido e revirado e a porta da sala de aula do professor Walden em pandarecos.
     Compreensivelmente, eles surtaram e chamaram a polí­cia. O pessoal de uniforme estava por toda parte, colhen­do impressões digitais e tirando medidas, como a distância que a cabeça de Junipero Serra percorrera e a velocidade em que precisava ter voado para fazer tantos buracos numa por­ta feita de madeira com espessura de sete centímetros, e coisas assim. Eu vi um sujeito metido num jaquetão de cou­ro azul-marinho conversando com o padre Dominic, que parecia mesmo muito, mas muito cansado. Não consegui que ele me visse, e concluí que teria de esperar o fim da for­matura para sair de fininho e me desculpar com ele.
     Na formatura, a irmã Ernestine, que era a vice-diretora, disse que aquilo tinha sido feito por vândalos. Um bando de vândalos tinha invadido a sala de aula do professor Walden e cometido aquele desatino todo na escola. Felizmente, acrescentou, o cálice e a bandeja de ouro maciço usados para o vinho e as hóstias do sacramento não tinham sido roubados e continuavam em seu devido lugar no altar da igreja. Os vândalos tinham decapitado violentamente o fundador do nosso colégio, mas deixaram em paz o que era realmente valioso. Se algum de nós soubesse alguma coisa sobre aquela terrível violência, deveria informar imedia­tamente. E se não nos sentíssemos à vontade para fazê-lo pessoalmente, poderíamos informar anonimamente - monsenhor Constantine estaria ouvindo confissões duran­te toda a manhã.
     Corta essa... Não era culpa minha se a Heather tinha ensandecido completamente. Nada disso. Se alguém tinha que se confessar era ela.
     Ali na formatura eu estava bem atrás da Cee Cee que mal conseguia esconder sua felicidade com o que tinha acontecido; dava até para ver a manchete se formando em sua mente: "Vândalos arrancam a cabeça do padre Serra". Estiquei um pouco o pescoço para tentar ver os veteranos. E se o Bryce estivesse lá? Eu não estava conseguindo vê-lo. Talvez o padre Dom já tivesse falado com ele e ele tivesse voltado para casa. Ele não podia deixar de ter visto que aquele estrago todo ali no pátio decorria de muita agitação espiritual, e não humana. E eu esperava que o padre Dom não tivesse recorrido aos piolhos.
     Tudo bem, era mais em mim do que no Bryce que eu es­tava pensando. Eu queria muito que o nosso encontro de sábado desse certo, e não que fosse cancelado por causa de piolhos. Por acaso é algum crime? Não é possível que uma garota comum tenha de passar o tempo todo enfrentan­do distúrbios psíquicos. Um pouquinho de romance também não faz mal nenhum.
     Mas é claro que assim que a formatura acabou e eu ten­tei me encaminhar depressinha para o gabinete do padre Dom, a irmã Ernestine me apanhou com a boca na botija, no exato momento em que eu tentava passar por baixo de uma das fitas amarelas, e foi dizendo:

     - Espera aí um pouquinho, senhorita Jilian. Talvez lá em Nova York as pessoas possam ignorar fitas de isolamento da polícia, mas aqui na Califórnia não é nada recomendável.

     Eu me endireitei. Quase tinha conseguido... Fiquei pen­sando umas coisas nada agradáveis sobre a irmã Ernestine, mas consegui dizer educadamente:

     - Puxa, irmã, sinto muito. É que eu preciso chegar ao gabinete do padre Dominic.

     - O padre Dominic - disse friamente irmã Ernestine - está muito ocupado esta manhã. Ele está reunido com os policiais por causa do lamentável incidente da noite passa­da. Não vai poder falar com ninguém mais pelo menos até depois do almoço.

     Eu sei que provavelmente não é certo ficar pensando em dar um golpe de caratê no pescoço de uma freira, mas não conseguia me impedir. Ela estava me deixando nervosa.

     - Deixa eu lhe dizer uma coisa, irmã - continuei. - O padre Dominic pediu que eu viesse falar com ele hoje de manhã. Ele quer ver uns... uns documentos que eu trouxe da minha antiga escola. Eu tive de pedir que mandassem esses documentos por correio especial lá de Nova York, e eles acabam de chegar...

     Fiquei achando que tinha reagido com incrível rapidez mental, inventando aquela história de documentos e cor­reio especial, mas a irmã Ernestine esticou o braço e disse:

     - Entregue-os a mim e eu os faço chegar ao padre. - Droga!

     - É... - disse eu, recuando. - Pode deixar. Acho que eu vou... vou então falar com ele depois do almoço.

     Irmã Ernestine me olhou com um jeito de "eu sabia" e voltou sua atenção para o inocente garoto que caíra na besteira de ir ao colégio de jeans, uma falta imperdoável. O guri tentou se justificar humildemente, dizendo que eram as únicas calças limpas que tinha naquele dia, mas a irmã Ernestine ficou firme. Firme, infelizmente, no exato lugar por onde eu poderia passar a caminho do gabinete do di­retor, tratando de anotar a falta do aluno.
     Eu não tinha outra opção senão ir para a sala de aula. Afinal, que poderia dizer ao padre Dominic que ele já não soubesse? Eu tinha certeza de que ele sabia que a Heather é que tinha devastado o colégio, e que eu tinha quebrado a janela da sala do professor Walden. Provavelmente ele nem ia estar assim tão satisfeito comigo, logo, por que me preocupar? O que eu devia estar fazendo mesmo era tratar de fazer com que ele esquecesse de mim.
     A não ser que... onde andaria a Heather?
     Pelo que eu podia imaginar, ela ainda devia estar se recuperando de sua fúria assassina da noite anterior. Não vi qualquer sinal dela quando me encaminhei para a sala de aula do professor Walden para o primeiro período, o que era bom sinal: significava que o padre Dominic e eu teríamos tem­po para fazer algum plano antes que ela voltasse a atacar.
     Enquanto assistia à aula tentando me convencer de que tudo ia dar certo, eu não podia deixar de sentir uma certa pena do professor Walden. Ele estava com a porta da sua sala razoavelmente destruída. Até que nem parecia estar se importando tanto com a janela quebrada. Claro que todo mundo no colégio estava comentando o que havia acon­tecido. As pessoas estavam dizendo que a decapitação de Junipero Serra tinha sido uma piada de mau gosto. Mas uma piada e tanto. Uma vez, há alguns anos, contara-me Cee Cee, os veteranos tinham amarrado travesseiros nos badalos dos sinos da igreja, de modo que quando foram to­cados só saiu um ridículo som abafado. Acho que as pes­soas ficaram achando que era uma gracinha do mesmo gênero.
     Se eles soubessem a verdade... O lugar da Heather, ao lado da Kelly Prescott, continuava vazio, enquanto o seu armário - que agora era meu - ainda não podia ser usado por causa do amassão provocado pelo impacto do seu corpo.
     Não deixou de ser irônico que, enquanto eu estava pen­sando exatamente nisto, a Kelly levantasse o braço e, rece­bendo autorização do professor Walden para falar, pergun­tasse se ele não achava injusto que monsenhor Constantine decidisse que não haveria nenhum serviço religioso em memória da Heather.
     O professor Walden recostou-se na cadeira e pôs os pés em cima da mesa. E tratou de tirar o corpo fora.

     - Não pergunte a mim. Eu só trabalho aqui.

     - Mas o senhor não acha que é injusto? - insistiu a Kelly, voltando-se para o resto da turma com seus enormes cílios cheios de rímel piscando muito. - A Heather freqüentou este colégio durante dez anos. Não dá para entender que ela não possa ser homenageada em seu próprio colégio. E para dizer a verdade eu acho que o que aconteceu ontem foi um sinal...

     O professor Walden parecia estar se divertindo horrores:

     - Um sinal, Kelly?

     - Exatamente. Tenho certeza de que o que aconteceu aqui ontem à noite, inclusive aquela tora de madeira que quase matou o Bryce, tem ligação. Não acho mesmo que a estátua do padre Serra tenha sido depredada por vândalos, e sim por anjos. Anjos que estão muito danados com o fato de monsenhor Constantine não permitir que os pais da Heather realizem seu funeral aqui.

     A turma toda começou a cochichar. As pessoas ficavam olhando nervosas para o lugar vazio da Heather. Geralmente eu não falo muito no colégio, mas aquela eu não podia deixar passar. Disse então:

     - Você está dizendo então que foi um anjo que quebrou esta janela aqui atrás de mim, Kelly?

     Ela precisou virar-se para me ver.

     - Bem... - fez ela. - Pode ter sido...

     - Certo. E você acha que foram anjos que arrombaram a porta da sala, arrancaram a cabeça da estátua e arrasaram o pátio?

     Kelly esticou o queixo para a frente.

     - Sim - disse. - Acho sim. Foram anjos inconformados com a decisão de monsenhor Constantine de não permitir que a gente homenageie a Heather.

     Eu balancei a cabeça.

     - Besteira - disse.

     Kelly levantou as sobrancelhas:

     - Como?!

     - Besteira, Kelly. Acho que a sua teoria é pura besteira. A Kelly adquiriu uma coloração avermelhada das mais interessantes. Acho que ela provavelmente estava lamen­tando ter-me convidado para a festa na piscina.

     - Você não pode ter certeza de que não foram anjos, Karen - disse ela toda azeda.

     - Na verdade posso, pois pelo que sei anjos não san­gram, e o carpete estava cheio de sangue desde o lugar on­de o vândalo se cortou ao arrombar a janela até aqui. Foi por isto que a polícia cortou pedaços do carpete para exa­miná-los.

     A Kelly não foi a única a engolir em seco. Todo mundo meio que surtou. Provavelmente eu não devia ter falado do sangue, ainda mais porque era meu, mas não podia deixar que ela ficasse dizendo que era tudo por causa dos anjos. Anjos uma droga. O que ela estava pensando? Que estava no cinema?

     - Muito bem, muito bem - interrompeu o professor Walden. - Agora, pessoal, está na hora do segundo perío­do. Karen, posso falar com você um instantinho?

     Cee Cee virou-se para ficar abanando aqueles cílios dela na minha direção.

     - Agora chegou a sua vez, otária - disse.

     Mas ela nem estava sabendo como podia estar certa. Bastava que qualquer um desse uma olhada nos band-aids que estavam no meu pulso, e ficaria sabendo que eu sabia por experiência própria de onde vinha aquele sangue.
     Por outro lado, ninguém podia ter algum motivo para suspeitar de mim, confere?
     Fui me aproximando da mesa do professor Walden com o coração na boca. Ele vai te entregar, pensei, furiosa. Você é uma negação, Karen.
     Mas o professor Walden só queria me cumprimentar pelas notas de pé de página da minha redação sobre a bata­lha de Bladensburgo, que ele havia notado quando eu a en­treguei.

     - Ah... - disse eu. - Não é nada demais, professor.

     - Sim, mas notas de pé de página... - suspirou ele. - Desde que eu dava aulas para adultos na escola comuni­tária, nunca mais tinha voltado a ver notas de pé de pági­na serem usadas corretamente. Realmente, você fez um excelente trabalho.

     Eu balbuciei um modesto obrigado. Eles não precisavam ficar sabendo que eu entendia tanto da batalha de Bladensburg porque uma vez tinha ajudado um veterano da guer­ra a levar dois antepassados dele até o local onde fora en­terrado um saco de dinheiro que ele deixara cair na luta. Podem ser mesmo bem engraçadas as coisas que ficam impedindo as pessoas de seguirem com sua vida... ou melhor, com sua morte.
     Eu estava quase dizendo ao professor Walden que gostaria muito, em condições normais, de ficar batendo um bom papo sobre grandes batalhas americanas, mas que tinha de ir (eu ia ver se a irmã Ernestine ainda estava montando guarda no caminho para o gabinete do padre Dom), quan­do ele me deteve com estas simples palavras:

     - É engraçado, realmente, que a Kelly tenha se referido daquela maneira à Heather, Karen.

     Eu olhei para ele desconfiada:

     - Ah, é? Como assim?

     - Bem, não sei se você sabia, mas a Heather era vice-presidente da turma dos segundanistas, e agora que não a temos mais aqui eu estou recolhendo indicações para o cargo. E acredite ou não, você foi indicada. Doze vezes por enquanto.

     Meus olhos devem ter saltado da órbita. Esqueci com­pletamente que eu tinha de me arrancar dali para ir falar com o padre Dominic.

     - Doze vezes?!

     - Sim, é estranho, não é mesmo? - Eu não conseguia acreditar.

     - Mas eu só estou aqui há um dia!

     - O fato é que você causou uma forte impressão. Eu mesmo me arriscaria a dizer que você não fez exatamente inimigos ontem quando ameaçou quebrar os dedos da Debbie Mancuso depois da aula. Ela não é das colegas mais queridas...

     Eu fiquei olhando para ele. Quer dizer então que o pro­fessor Walden realmente tinha ouvido a minha ameaça. O fato de ele ter ouvido e não me ter mandado direto para o castigo me fez admirá-lo de uma maneira que nenhum pro­fessor antes havia merecido.

     - E acho também que o fato de você ter empurrado o Bryce Martinson quando aquela tora de madeira vinha na direção dele também deve ter ajudado um pouco - acres­centou.

     - Uau! - fiz eu.

     Provavelmente nem preciso lembrar aqui que na minha antiga escola eu não era certamente aquela que ganhava os concursos de popularidade. Eu nem me dava ao trabalho de me oferecer para ser líder de torcida ou madrinha do time. Mesmo considerando que na minha escola antiga ser líder de torcida era considerado uma enorme perda de tem­po e que no Brooklyn não é exatamente um elogio ser cha­mada de madrinha de alguma coisa, o fato é que eu nun­ca teria conseguido ser qualquer das duas coisas. E ninguém - mas ninguém mesmo - nunca tinha me indicado antes para o que quer que fosse.
     Eu estava orgulhosa demais para seguir meu instinto, que me dizia: agradeça, mas diga que não, e saia correndo.

     - Bem... - comecei. - Quais são as obrigações do vice- presidente?

     O professor Walden explicou:

     - Ajudar o presidente a decidir como gastar a verba da turma, principalmente. Não é muita coisa, um pouco mais de três mil dólares. A Kelly e a Heather estavam planejan­do promover uma festa no Carmel Inn, mas...

     - Três mil dólares!? - repeti, provavelmente com o queixo caído.

     - É, eu sei que não é muito...

     - E a gente pode gastar como quiser? - Minha mente estava girando. - Quer dizer que se a gente quisesse fazer uma série de festinhas na praia poderíamos?

     O professor Walden me olhou com curiosidade.

     - Claro. Mas o resto da turma precisa aprovar. Desconfio que pode estar rolando na administração um papo sobre usar o dinheiro da turma para consertar a estátua do padre Serra, mas...

     O que quer que o professor Walden fosse acrescentar, no entanto, não conseguiu. A Cee Cee voltou correndo para a sala, os olhos muito arregalados por trás das lentes de seus óculos de vidro colorido:

     - Venham, venham depressa! - berrava ela. - Aconteceu um acidente! O padre Dominic e o Bryce...

     Eu saí correndo feito uma bala.

     - O quê? - perguntei, com muito mais ênfase do que seria desejável. - Que aconteceu com eles?

     - Acho que estão mortos!

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     Poxa poxa! Ninguem comenta! Vou passar a pedir comentarios para poder continuar!
     Só quero um comentariozinho, a sua mão não vai cair se você comentar.
     Beijos beijos... Espero que estejam gostando.

A Mediadora/ A Terra das sombras - Capitulo 12

     Vamos para casa. Aquele "Vamos para casa" tinha um ar tão acon­chegante...
     Só que a casa na qual ambos estávamos vivendo ainda não me parecia exatamente como se fosse um lar. E como poderia? Eu só estava vivendo lá há uns poucos dias...
     E por outro lado, claro, ele não tinha nada de estar viven­do lá...
     De qualquer maneira, fantasma ou não fantasma, ele sal­vara a minha vida. Isto não se podia negar. E talvez só o tivesse feito para cortejar o meu lado bom, para que eu não acabasse por expulsá-lo completamente da casa.
     Independentemente do motivo, o fato é que tinha sido muito legal da parte dele. Até então ninguém nunca tomara a iniciativa de me ajudar - principalmente, é claro, porque ninguém sabia que eu precisava de ajuda. Nem a Gina, que estava presente quando madame Zara declarou que eu era uma mediadora, sabia por que eu aparecia às vezes na es­cola com os olhos muito fundos, ou onde é que eu me metia quando faltava às aulas - coisa que eu fazia com bastante freqüência. E eu não podia explicar o que estava acontecendo. Não que a Gina fosse pensar que eu estava maluca ou alguma coisa assim, mas ela acabaria dizendo a alguém mais (a gente só consegue manter segredo sobre essas coisas quando estão acontecendo conosco), que por sua vez diria a mais alguém e eu sabia que em algum momento alguém acabaria dizendo a minha mãe.
     E minha mãe entraria em surto. Claro que é isto que as mães costumam fazer, e a minha não é diferente das ou­tras. Ela já tinha me obrigado a fazer terapia e eu tinha de me sentar lá e ficar inventando mentiras complicadas na esperança de explicar meu comportamento anti-social. Eu não tinha a menor intenção de ir parar num asilo de loucos, que certamente era onde eu iria acabar se minha mãe algu­ma vez tivesse descoberto a verdade.
     De modo que só podia me sentir agradecida por ter Dillan ao meu lado, embora ele me deixasse meio nervosa. Depois de toda aquela catástrofe lá na Missão, ele me acompanhou até em casa, um perfeito cavalheiro. E até insistiu em em­purrar ele mesmo a bicicleta, por causa da minha ferida. Se alguém tivesse olhado pelas janelas das casas por onde íamos passando, teria pensado que estava vendo coisas: eu me arrastando com dificuldade e aquela bicicleta deslizando ao meu lado sem o menor problema - com o detalhe de que mi­nhas mãos nem tocavam nela.
     Ainda bem que na Costa Oeste as pessoas vão dormir cedo.
     O tempo todo, enquanto voltávamos para casa, a única coisa em que eu conseguia pensar era o que havia saído errado no confronto com a Heather. Não voltei a falar do assunto - já o havia feito bastante; não queria ficar pare­cendo um disco quebrado, ou uma pianola quebrada ou o que quer que se usasse na época do Dillan. Mas era o único assunto em que eu conseguia pensar. Nunca, mas nunca mesmo, em todos aqueles meus anos como mediadora, eu havia encontrado um espírito tão violento e irracional. Eu simplesmente não sabia o que fazer. E eu sabia que preci­sava encontrar uma saída, e bem depressa; faltavam só umas poucas horas para começarem as aulas e o Bryce cair di­reitinho na armadilha mortal que estava sendo preparada para ele.
     Não sei se o Dillan percebeu por que eu estava tão cala­da, ou se ele estava pensando na Heather também... Só sei que de repente ele quebrou o silêncio e disse:

     - Não há no céu fúria comparável ao amor transforma­do em ódio nem há no inferno ferocidade como a de uma mulher desprezada.


     Eu olhei para ele.


     - Está falando por experiência própria? Ele deu um pequeno sorriso à luz da lua.


     - É uma citação de William Congreve.


     - Ah... Mas, como você sabe, às vezes a mulher desprezada está cheia de razões de ficar furiosa.


     - E você, está falando por experiência própria? - quis saber ele.


     Eu dei uma risada.


     - Nem de longe.


      Para te desprezar, é porque antes o cara gostou de você. Mas isto eu não disse em voz alta. Não há a menor hipótese de que eu pudesse alguma vez dizer uma coisa dessas em voz alta. Não que eu estivesse preocupada com o que o Dillan podia pensar de mim. Por que haveria de me preocupar com o que um caubói morto podia pensar de mim?

     Mas eu não ia reconhecer diante dele que nunca havia tido um namorado. A gente não sai por aí dizendo coisas as­sim a caras gostosões como ele, mesmo que estejam mortos.

     - Mas a gente não sabe o que aconteceu entre a Heather e o Bryce. No fundo, não sabemos. Ela podia ter muitas razões para estar ressentida.


     - Ressentida com ele, acho que sim - disse Dillan, embo­ra parecesse relutante em admiti-lo. - Mas não com você. Ela não tinha direito de tentar machucá-la.


     Ele parecia tão furioso com aquilo que achei melhor mu­dar de assunto. No fundo, eu é que devia ter ficado dana­da com o fato de a Heather ter tentado me matar, mas sabe como é, já estou meio acostumada a lidar com gente irra­cional. Tudo bem, não tão irracional como a Heather, mas vocês sabem o que estou querendo dizer. E se há uma coisa que eu já aprendi, é que não se pode tomar as coisas pelo lado pessoal.  Certo, ela tinha tentado me matar, mas como é que eu vou saber se ela tinha algum discernimento? Quem pode garantir como eram os pais dela, afinal de contas? E se eles eram do tipo que saía por aí matando o primeiro ca­paz de contrariá-los?...

     Mas depois de ver aquele colar de pérolas eu fiquei du­vidando que eles fossem desse tipo.
     Enquanto estava pensando nessas matanças, acabei me perguntando por que o Dillan acabara ficando tão indigna­do. Foi aí que me dei conta de que provavelmente ele ti­nha sido assassinado. Ou então tinha se matado. Mas não achava que ele fosse capaz de se matar. Achava que ele pode­ria ter morrido de alguma doença arrasadora...
     Talvez não tenha sido muito delicado da minha parte (mas de qualquer forma eu nunca fui propriamente famosa pela delicadeza), mas acabei indo em frente e perguntei, quando estávamos subindo a longa ladeira coberta de cas­calho até em casa.

     - Mas e você? Como foi mesmo que morreu?


     Dillan não disse nada logo em seguida. Provavelmente eu o tinha ofendido. Já pude notar que os fantasmas não gostam muito de falar sobre como morreram. Às vezes nem se lem­bram. Vítimas de acidentes de carro geralmente não têm a menor idéia do que lhes aconteceu. Por isto é que eu sem­pre as vejo vagando em busca das outras pessoas que es­tavam no carro com elas. Tenho então de explicar o que aconteceu e tentar de alguma maneira imaginar onde po­dem estar as pessoas que elas estão procurando. E isto é também um bocado doloroso, podes crer. Eu tenho de me abalar até a delegacia onde foi registrado o acidente, fingir que estou fazendo um trabalho para o colégio ou algo as­sim, copiar os nomes das vítimas e tentar descobrir o que aconteceu com elas.

     Posso garantir que às vezes parece que meu trabalho nun­ca chega ao fim.
     Seja como for, Dillan ficou calado por um momento e eu achei que ele não ia me contar. Ele estava olhando bem para a frente, na direção da casa - a casa onde tinha morrido, a casa onde haveria de ficar rondando até que... bem, até que pudesse resolver o problema que o estava retendo neste mundo.
     A lua ainda estava à vista, bem alto lá no céu, e eu po­dia ver o rosto do Dillan como se fosse dia. Ele não estava parecendo muito diferente do habitual. Sua boca, que era mais para larga, de lábios finos, parecia estar meio carrancuda, o que, até onde eu sabia, era o que costumava fazer. E por baixo daquelas espessas sobrancelhas negras, seus olhos, de cílios tão densos, eram tão reveladores quanto um espelho - quer dizer, eu provavelmente seria capaz de ver meu reflexo neles, mas não adivinharia nada sobre o que ele estava pensando.

     - Hmm... - disse eu. - Sabe o que mais? Esquece. Se não quiser, não precisa me dizer...


     - Não - ele respondeu. - Tudo bem.


     - É só que eu estava meio curiosa, só isso. Mas se você achar que é uma coisa muito pessoal...


     - Não, não é. - Nós já havíamos chegado à casa. Ele em­purrou a bicicleta até o ponto onde ela devia ficar e a recostou no muro da garagem. Estava mergulhado na som­bra quando afinal disse. - Como você sabe, nem sempre esta casa foi uma casa de família.


      Como se fosse a primeira vez que o ouvia falar daquilo, exclamei:


     - É mesmo?!


     - Sim. Houve uma época em que era um hotel. Quer di­zer, mais uma estalagem propriamente do que um hotel.


     Perguntei então, toda animada:


     - E você estava hospedado aqui?


     - Sim. - Ele saiu da sombra da garagem, mas em vez de olhar para mim quando voltou a falar, estava com o olhar apertado voltado para o mar. Eu tentei animá-lo.


     - E... Aconteceu alguma coisa quando você estava aqui?


     - Sim. - E ele olhou para mim. Ficou me olhando por um longo momento. Depois, disse: - Mas esta é uma longa história, e você deve estar muito cansada. Vá se deitar. Amanhã de manhã decidiremos o que fazer sobre a Heather.


     Pode ser mais injusto?


     - Espera um pouco - interrompi. - Não vou a lugar nenhum enquanto você não acabar de contar essa história.


     Ele balançou a cabeça:


     - Não, já é muito tarde. Eu conto uma outra vez.


     - Puxa vida! - Eu devia estar parecendo uma garotinha recebendo ordens da mãe para ir-se deitar cedo, mas estava pouco ligando. Estava danada da vida. - Você não pode começar uma história assim e não acabar de contá-la. Você tem de...


     Agora o Dillan estava rindo de mim.


     - Vá se deitar, Karen - disse ele, empurrando-me suavemente para a escada. - Você já foi suficientemente assustada esta noite.


     - Mas você...


     - Quem sabe outra vez... - insistiu ele. Já me havia condu­zido na direção da varanda e agora eu estava no primeiro degrau, voltando-me para vê-lo rindo de mim.


     - Você promete?


     Seus dentes brilharam no luar.


     - Prometo. Boa noite, hermosa.


     - Já disse para não me chamar disso - resmunguei, subindo os degraus com toda força.


     Mas já eram quase três horas da manhã e o máximo que eu conseguia era fingir indignação. É bom lembrar que eu ainda estava no horário de Nova York, três horas na frente. Já era difícil levantar na hora para ir para a escola quando eu conseguia dormir oito horas inteirinhas. Como é que haveria de ser com apenas quatro horas de sono?

     Entrei na casa o mais discretamente possível. Felizmente, todo mundo, menos o cachorro, dormia profundamente. Ao me ver, ele levantou a cabeça no sofá onde se havia espi­chado e começou a sacudir o rabo. Grande cão de guarda. E minha mãe, que não queria saber de vê-lo dormindo no sofá branquinho... Mas eu é que não ia transformar o Max em inimigo, enxotando-o dali. Se bastava deixar que ele continuasse dormindo no sofá para impedir que avisasse à casa inteira que eu tinha saído, valia a pena.
     Fui me arrastando como podia escada acima, pensando o tempo todo no que haveria de fazer com a Heather. Prova­velmente teria de me levantar cedo e telefonar para o colé­gio, avisando ao padre Dom que fosse ao encontro do Bryce assim que ele pusesse os pés no campus e o mandasse de volta para casa. E decidi que nem mesmo me haveria de opor se fosse necessário recorrer aos piolhos. No fim das contas, a única coisa que interessava era impedir que a Heather conseguisse o que queria.
     Ainda assim, a simples idéia de ter de levantar cedo para fazer alguma coisa - mesmo que fosse salvar a vida do cara com quem eu tinha um encontro no sábado à noite - não parecia das mais atraentes. Agora que a adrena­lina toda já havia passado, eu me dava conta de que estava morta de cansaço. Fiz mais um esforcinho e consegui chegar até o banheiro para vestir o pijama - claro, pois embora tivesse certeza de que o Dillan não estava me espio­nando, ele ainda não havia dito como tinha morrido, e portanto eu não ia arriscar nada. Ele bem que podia ter sido enforcado por voyeurismo, uma pena que eu acreditava ter sido aplicada algumas vezes uns cento e cinquenta anos antes.
      Foi só no momento em que decidi mudar a atadura no meu pulso que prestei atenção no que ele havia usado.
      Era um lenço. Antigamente todo mundo usava lenço de pano, pois não havia lenços de papel. E as pessoas pareciam dar a maior importância, costurando neles as suas iniciais  para que não se perdessem ao serem lavados.
      Só que o lenço do Dillan não tinha suas iniciais, conforme pude notar ao lavá-lo e tentar tirar o meu sangue o melhor que pude. Era um grande quadrado de linho, branco (bom, já então meio cor-de-rosa) com um debrum de delicada renda branca. Meio delicadinho para um cara como ele. Eu teria ficado meio cismada com a orientação sexual do Dillan se não tivesse visto as iniciais que estavam bordadas num dos can­tos. Os pontos eram minúsculos, linha branca sobre tecido branco, mas as letras propriamente eram enormes, numa caligrafia floreada: MDS. Isso mesmo. MDS. Nada de J.
     Estranho. Muito estranho.
     Pendurei o lenço para secar. Não precisava me preocu­par com a possibilidade de alguém vê-lo. Para começo de conversa, só eu usava o meu banheiro, e além disso ninguém era mesmo capaz de ver o Dillan, portanto ninguém pode­ria ver o seu lenço. Amanhã de manhã ele estaria lá exata­mente como agora. E talvez eu decidisse exigir explicações sobre aquelas letras antes de devolvê-lo. MDS.
     Só quando estava começando a adormecer é que me dei conta de que MD devia ser uma garota. Caso contrário, por que tanta rendinha? E aquelas letras todas caprichadas? Será então que o Dillan não tinha morrido num tiroteio, como eu acreditava inicialmente, e sim em alguma briga de amantes?
     Não sei por que, mas o fato é que esta idéia me deixou bem perturbada. Por causa dela fiquei acordada bem uns três minutos. Até que virei para o outro lado, senti falta da minha antiga cama por um instantinho só e caí no sono.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A Mediadora/A Terra das sombras - Capitulo 11

     Nós conseguimos voltar para a sala do professor Walden. Não sei como, mas conseguimos, com a cabeça da estátua zunindo atrás de nós o tempo todo, a uma tal velocidade que chegava a fazer um apito medonho, como se o padre Serra estivesse gritando. A cabeça foi dar com a força de uma bala de canhão contra a pesada porta de madeira, uma fração de segundo depois de nós entrarmos e batermos a porta.
     - Díos! - exclamou Dillan, enquanto jogávamos o peso de nossas costas contra a porta, ofegantes, como se pudéssemos impedir a passagem simplesmente com nosso peso... logo a Heather, que, se quisesse, podia atravessar paredes. - Você disse que era perfeitamente capaz de cuidar de si mesma. Disse também que precisava primeiro livrar-se dela. Perfeito...
     Eu estava tentando recuperar o fôlego, pensar no que fazer. Nunca tinha visto uma coisa daquelas. Nunca. 


     - Cala a boca - disse.

     - Bafo de cadáver... - Dillan voltou-se para me olhar de frente. Seu peito arfava, subindo e descendo. - Você se dá conta de que me chamou de bafo de cadáver? Magoou hermosa. Magoou mesmo.

     - Eu já disse... - Alguma coisa pesada estava esmurrando a porta. Eu a sentia bem na altura da minha espinha. Não era preciso ser um gênio para adivinhar que era a cabeça do fundador de uma certa Missão. -... para não me chamar de hermosa!

     - Pois eu também ficaria agradecido se você não fizesse comentários desabonadores a meu respeito.

     - Olha aqui - disse eu. - Esta porta não vai aguentar para sempre.

     - Não - concordou ele, no exato momento em que a cabeça de metal começou a aparecer por uma fenda que se ia abrindo na madeira. - Posso dar uma sugestão?

     Eu estava horrorizada, com os olhos arregalados grudados naquela cabeça de metal, que se havia voltado, metade para dentro e metade para fora da porta, para ficar me olhando com frios olhos de bronze. Parece maluquice, mas sou capaz de jurar que ela estava sorrindo para mim.

     - Claro - eu disse.

     - Corra!
  
     Eu não hesitei nem um segundo em aceitar o conselho. Corri para o peitoril da janela, e, sem dar a menor bola para os cacos de vidro quebrado, agarrei-me a ela. Levei apenas alguns segundos para abrir a janela, mas foi o suficiente para que Dillan, ainda lutando contra o que já agora começava a soar como um furacão, pedisse:

     - Poderia andar mais rápido, POR FAVOR?

     Eu saltei em direção ao estacionamento. Lá fora, do outro lado das espessas paredes de tijolo cru da Missão, era engraçado que nem dava para dizer que uma violenta manifestação paranormal estava acontecendo do lado de dentro. O estacionamento ainda estava vazio e tranquilo, acariciado pela sonoridade ritmada das ondas do mar. É impressionante como podem acontecer as coisas mais absurdas bem debaixo do nariz das pessoas e elas nem percebem...

     - Dillan! - sussurrei através da janela. - Vamos, venha!

     Eu não tinha a menor idéia se a Heather seria capaz de querer descarregar sua raiva em cima de algum passante, ou se o Dillan, caso ela o fizesse, tinha algum truque guardado para reagir, como aquele que ela tinha usado com a cabeça da estátua. Eu só sabia que quanto mais cedo a gente saísse do alcance dela, melhor.
     Bom, quero deixar logo claro que eu não sou nenhuma covarde. Realmente não sou. Mas também não sou nenhuma maluca. Considero que quando a gente se dá conta de que está enfrentando uma força muito maior que a nossa, não tem nada de mais sair correndo.
     Mas deixar os outros para trás não é certo.

     - Dillan!!! - berrei através da janela.

     - Acho que já mandei você correr - disse atrás de mim uma voz muito irritada. 

     Eu engoli em seco e dei meia-volta. Lá estava o Dillan, de pé no asfalto do estacionamento, com a Lua por trás dele, o que deixava seu rosto na sombra.

     - Oh meu Deus! - Meu coração batia tão depressa que eu pensei que ele fosse explodir. Eu nunca tinha sentido tanto medo em toda a minha vida. Nunca.

     Talvez por isto eu tenha decidido então esticar os dois braços e agarrar a camisa do Dillan com as duas mãos.

     - Oh meu Deus - repeti. - Dillan, você está bem?

     - Claro que estou. - Ele parecia surpreso que eu me desse ao trabalho de perguntar. E acho que era mesmo uma pergunta cretina. Afinal, que mal a Heather podia fazer ao Dillan? Não dá para imaginar que ela fosse matá-lo... - E você, está bem?

     - Eu? Estou ótima. - Voltei-me então para as janelas da sala do professor Walden. - Você acha que conseguimos... neutralizá-la?

     - Por enquanto - disse Dillan.

     - E como você sabe? - Eu estava chocada de ver que estava tremendo, tremendo de verdade, da cabeça aos pés. - Como sabe que ela não vai atravessar aquelas paredes feito um tufão e começar a arrancar as árvores por aí e jogá-las contra nós?

     Dillan balançou a cabeça, e eu vi que ele estava sorrindo. Até que para um sujeito que morreu antes de inventarem a ortodontia ele tinha uns dentes bem bonitos. Quase tão bonitos quanto os do Bryce.

     - Pode estar certa que não. 

     - Mas como é que você sabe?

     - Porque não. Ela nem sabe que é capaz disto. Ela é muito nova no ramo, Karen. Ainda não sabe do que é capaz.

     Se o objetivo era me fazer sentir melhor, não funcionou. O fato de ele reconhecer que ela era capaz de arrancar árvores e começar a atirá-las à distância - sim, ela tinha este poder - e só não o fazia por falta de experiência bastou, entretanto, para eu parar de tremer feito vara verde e largar a camisa dele. Não que eu não achasse que a Heather podia ter-me seguido se quisesse. Ela era perfeitamente capaz disso, exatamente como o Dillan me havia seguido até a Missão. Mas a diferença é que o Dillan sabia que era capaz. Ele já era fantasma há muito mais tempo que a Heather. Ela estava apenas começando a explorar suas novas possibilidades.
     Era isto que dava mais medo. Ela era tão nova naquilo tudo... e já tão poderosa.
     Eu comecei a caminhar pelo estacionamento feito uma maluca.
     
     - Precisamos fazer alguma coisa - disse. - Temos de avisar o padre Dominic... e também o Bryce. Meu Deus, temos de avisar ao Bryce que não venha ao colégio amanhã. Ela vai matá-lo. Vai matá-lo no exato momento em que ele puser o pé no campus...

     - Karen - disse Dillan.

     - Acho que podemos telefonar para ele. É uma hora da manhã, mas podemos telefonar e dizer a ele... nem sei o que a gente pode dizer para ele. Talvez possamos dizer que houve uma ameaça de morte contra ele, ou alguma coisa assim. Talvez funcione. Ou então podemos mandar uma ameaça de morte. Isso mesmo! É isso aí! Podemos telefonar para a casa dele, aí eu disfarço a minha voz e digo algo do tipo "Não venha ao colégio amanhã ou poderá morrer". Talvez ele entenda. Talvez ele...

     - Karen - voltou a dizer o Dillan.

     - Ou então o padre Dom se encarrega! A gente faz o padre Dom telefonar para o Bryce e dizer para ele não vir ao colégio, que houve algum acidente ou coisa assim...

    - Karen. - Dillan postou-se na minha frente no exato momento em que eu dei meia-volta mais uma vez, para percorrer feito uma siderada o mesmo caminho que estava percorrendo há alguns minutos. Fui obrigada a parar, apanhada de surpresa com sua proximidade, meu nariz praticamente batendo no exato ponto em que o colarinho da sua camisa estava aberto. Dillan agarrou os meus dois braços com firmeza e rapidez, para me fazer parar.

     Não foi uma boa idéia. Claro, eu sei que um minuto antes eu o tinha agarrado - bem, não exatamente a ele, mas a sua camisa. Mas em circunstâncias normais eu não gosto de ser tocada, e muito menos por fantasmas. E sobretudo não gosto de ser tocada por fantasmas que têm mãos grandes e fortes como as do Dillan.

     - Karen - disse ele mais uma vez, antes que eu conseguisse dizer-lhe que tirasse suas manoplas de cima de mim. - Tudo bem. Não é culpa sua. Você não podia fazer nada. 

     Eu meio que esqueci de ficar irritada com as mãos dele.


     - Eu não podia fazer nada? Você está brincando? Eu devia ter dado um pontapé naquela garota para ela ir parar de volta no seu túmulo!

     - Não - e Dillan sacudia a cabeça. - Ela a teria matado.

     - Uma ova! Eu podia perfeitamente com ela. Se ela não tivesse feito aquilo com a cabeça daquele cara...

     - Karen.

     - Eu sei o que estou dizendo, Dillan. Eu podia perfeitamente ter dado conta dela se ela não tivesse ficado tão enlouquecida. Aposto que se esperar só um pouquinho até ela se acalmar e voltar lá dentro, consigo convencê-la...

     - Não. - Ele soltou-me, mas logo tratou de passar um dos braços em volta do meu ombro e começou a me conduzir para longe do colégio, em direção à lixeira onde eu havia deixado a bicicleta. - Vamos. Vamos para casa.

     - Mas e...


     - Não - cortou ele, apertando mais os meus ombros.

     - Dillan, você não está entendendo. Este trabalho é meu. Eu tenho de...

    - É uma tarefa do padre Dominic também, não? Deixe que daqui para a frente ele cuida. Não há motivo para você ficar com toda a responsabilidade em cima dos seus ombros.

     - Pois há sim. Fui eu que estraguei tudo.

     - Foi você que encostou o revólver na cabeça dela e puxou o gatilho? 


     - Claro que não. Mas fui eu que a deixei tão furiosa. Não foi o padre Dom. Eu não vou ficar pedindo ao padre Dom que conserte as minhas besteiras. Não teria o menor sentido.

     - O que não tem sentido nenhum - explicou Dillan, tentando mostrar-se paciente - é alguém esperar que uma garota como você entre em luta com um demônio dos infernos como...

     - Ela não é um demônio dos infernos. Só está com raiva. E está com raiva porque o único cara em quem achava que podia confiar revelou-se um...

     - Karen - e Dillan parou de caminhar de repente. Eu só não me desequilibrei e caí de cara no chão porque ele ainda estava segurando os meus ombros.

     Por um minuto, apenas um minuto, realmente fiquei pensando... bem, cheguei a pensar que ele ia me beijar. Eu nunca tinha sido beijada antes, mas parecia que estavam dadas todas as condições necessárias para que acontecesse um beijo naquela hora: sabe como é, o braço dele estava ao redor do meu ombro, tinha o luar, nossos corações estavam batendo mais depressa - e, claro, ambos acabávamos de escapar de ser mortos por um fantasma completamente ensandecido.
     Naturalmente, eu não sabia como me sentia ante a possibilidade de que meu primeiro beijo fosse dado por alguém do outro mundo, mas sabe como é, quem está em petição de miséria não pode ficar escolhendo, e posso garantir uma coisa, o Dillan era muito mais gracinha do que qualquer cara vivo que eu tinha conhecido ultimamente. Eu nunca tinha visto um fantasma tão bonitão. Parecia que ele não podia ter mais de vinte anos quando morreu. Fiquei me perguntando de que tinha morrido. Em geral é difícil dizer no caso dos fantasmas, pois seus espíritos tendem a assumir a forma que seus corpos tinham quando deixaram de funcionar. Meu pai, por exemplo, não é diferente hoje, quando aparece para mim, do que era um dia antes de sair para aquela fatal corrida no Prospect Park dez anos atrás.
     Eu só podia deduzir que o Dillan tinha morrido nas mãos de alguém, pois ele me parecia com uma saúde de ferro. Era bem provável que tivesse sido atingido por uma daquelas balas que deixaram buracos na varanda lá em baixo. Legal que o Andy os tivesse preservado para a posteridade.
     E agora aquele fantasma sensacional parecia que ia me beijar. E quem era eu para impedi-lo?
     De modo que inclinei um pouco a cabeça para trás, olhei para ele com as pestanas meio fechadas e meio que deixei minha boca ficar bem relaxada, sabe como é... E foi aí que eu percebi que a atenção dele não estava exatamente focalizada na região dos meus lábios, mas muito abaixo. Nem estava voltada para os meus seios, o que seria uma excelente segunda opção.

     - Você está sangrando - disse ele.


     Foi o suficiente para estragar completamente aquele momento. E para deixar meus olhos bem arregalados.

     - Não estou não - respondi automaticamente, pois não estava sentindo dor nenhuma. Então olhei para baixo. Pequenas manchas iam surgindo no piso debaixo dos meus pés. Não dava para dizer de que cor eram porque estava muito escuro. À luz da lua, pareciam negras. E logo em seguida constatei horrorizada que havia manchas escuras semelhantes na camisa do Dillan.

     Mas era óbvio que as manchas estavam vindo de mim. Comecei a me olhar e a me apalpar toda, e vi que eu tinha conseguido abrir uma das menores veias do meu pulso, mas ainda assim uma veia importante. Enquanto falava com a Heather, eu tinha tirado as luvas e as havia guardado nos bolsos, e em minha pressa de escapar, durante o acesso de raiva dela, esquecera de voltar a vesti-las. Provavelmente eu me havia cortado nos estilhaços de vidro que ainda estavam no parapeito da janela da sala de aula do professor Walden quando a pulei para fugir. O que servia para provar minha teoria de que é sempre na saída que a gente se machuca.

     - Oh! - disse eu, vendo o sangue escorrer. Sem conseguir dizer nada que tivesse alguma utilidade, acrescentei. - Mas que horror! Sujei a sua camisa toda...

     - Não é nada. - Dillan meteu a mão num dos bolsos da calça e tirou alguma coisa branca e macia que foi passando ao redor do meu pulso algumas vezes, para em seguida amarrá-la num laço. Enquanto fazia isto, não disse nada, totalmente concentrado no que estava fazendo. Quero registrar aqui que era a primeira vez que eu era atendida em primeiros socorros por um fantasma. Não era exatamente tão interessante quanto teria sido um beijo, mas também não posso dizer que era uma chatice. 

     - Pronto - disse ele ao concluir. - Está doendo?

     - Não - respondi, pois não estava mesmo. Eu sabia por experiência própria que só começaria a doer algumas horas depois. - Obrigada.

     - Não há de quê - disse ele.

     - Não... - De repente, a coisa mais ridícula, eu estava com vontade de chorar. Mesmo. E eu nunca choro. - Não, obrigada mesmo. Obrigada por ter vindo me ajudar. Mas não precisava... Quer dizer, estou feliz que você tenha vindo. E... bem, obrigada de novo. Só isso.

     Ele parecia ter ficado embaraçado. Acho que no fundo era perfeitamente natural que eu ficasse daquele jeito, toda dengosa com ele. Não consegui evitar. O fato é que eu ainda não estava conseguindo acreditar. Nenhum fantasma nunca tinha sido tão bonzinho assim comigo. Claro que meu pai tentou... Mas ele não era exatamente o tipo de pessoa de quem você pode esperar esse tipo de coisa. Na verdade eu nunca podia contar realmente com ele, especialmente numa crise.
     Mas o Dillan... O Dillan tinha vindo em meu socorro. E eu nem tinha pedido nada a ele. Na verdade, tinha até sido muito desagradável com ele, de maneira geral.

     - Esquece - foi tudo que ele conseguiu dizer. E acrescentou. - Vamos para casa.