sexta-feira, 2 de novembro de 2012

A mediadora/ A terra das sombras - Capitulo 2

     Eu vou explicar. É que eu não sou igual a qualquer garota de 16 anos.
     Eu falo com os mortos.
     Talvez seja melhor dizer que os mortos falam comigo. Por que eu não saio por ai procurando eles para conversar, eles veem a mim. Não importa aonde eu estiver eles sempre me acham.
     Eu não acho que eu seja louca, pelo menos não mais que uma garota normal de 16 anos.
     O meu primeiro fantasma foi quando eu tinha 2 anos. Eu não me lembro direito, eu era muito pequena. O que eu me lembro daquele dia é de eu ver uma aparição em cima da escada - ela era pequena cinzenta e desprotegida -, e fazer o que toda criança de 2 anos fazem, fui correndo para a minha mão para poder mostrar aquela aparição.
     Mas como eu ainda não sabia falar, minha mãe achou que eu estava falando alguma coisa sobre o rato que ela tinha me pegado abraçando.
Foi ai que eu aprendi a primeira lição sobre os fantasmas: só eu podia vê-los.
     Você deve estar se perguntando se eu não tenho medo deles. Eu nunca tive medo deles, dos ratos e nem dos fantasmas.
     De modo que a minha mão só concordou com a cabeça e disse:

     - Aham... Escuta, Karen. O que vai querer para o almoço? Queijo quente?

     Com 2 anos de idade, não me pareceu absurdo que minha mãe não tivesse visto a aparição. Naquela época só pareceu mais uma coisa que fazia as crianças diferentes dos adultos. As crianças tinham que comer todos os legumes do prato. Os adultos não. As crianças podiam ver aparições. Os adultos não.
      E embora eu tivesse apenas dois anos, entendi que aquela coisinha cinzenta no alto da escada não deveria ser comentada. Não deveria ser comentada com ninguém. Nunca.
      E eu nunca comentei. Por que também eu conversava com eles, mas nunca dava muita importância, quase nunca eu entendia o que eles estavam falando.
     Provavelmente a coisa teria continuado assim indefinidamente se meu pai não tivesse morrido.
     Durante toda a semana eu fiquei na varanda esperando ele voltar. As pessoas ficavam me falando que ele não ia voltar.
     Mas claro que eu não acreditava. Eu sabia que eu nunca mais ia velo vivo. Mas eu poderia ver o seu fantasma.
     E no fim eu estava certa. Eu voltei a vê-lo. É bem provável que eu veja ele hoje que ele esta morto do que quando estava vivo. Quando ele estava vivo, ele tinha que trabalhar e fazer um monte de coisas chatas. Agora não, agora eu o vejo até de mais. O passatempo favorito dele é aparecer quando eu menos espero. É meio chato.
     Foi meu próprio pai que finalmente me explicou tudo. De modo que num certo sentido é bom que ele tenha morrido, pois de outra forma eu nunca ficaria sabendo.
     Na verdade, não é bem verdade. Certa vez, uma cartomante de tarô disse algo a respeito. Foi numa festa na escola. Eu só fui porque a Gina não queria ir sozinha. Para mim ia ser uma chatice, mas acabei indo porque é para essas coisas que servem as melhores amigas. A mulher - Zara, médium vidente - leu as cartas da Gina, dizendo exatamente o que ela queria ouvir: você terá muito sucesso, terá três filhos, blablablá. Quando ela acabou, eu me levantei para ir embora, mas Gina insistiu em que Madame Zara também lesse cartas para mim.
     Você pode imaginar o que aconteceu. Madame Zara leu as cartas uma vez, ficou confusa, embaralhou-as e leu de novo. Depois olhou para mim:

     - Você fala com os mortos. - Disse ela.

     Gina ficou agitada:

     - Ai meu deus! Você ouviu Karen! Você também é médium.

     - Médium não. - Madame Zara disse. - Mediadora.

     - O quê? Que diabos é isso? - Disse Gina toda confusa.

      Eu já sabia. Não sabia o nome que davam, mas sabia o que era. Meu pai não tinha me explicado igual a Madame Zara me explicou, mas eu peguei a raiz da coisa: simplesmente eu sou o cantado para quase todo mundo que morreu deixando as coisa... incompletas.
     Você já entendeu então que nos últimos 16 anos a minha vida tem sido mesmo um mar de rosas né.
     Imagina, você vai na lanchonete tomar um refrigerante... opa, falecido na esquina, e se você pude-se levar os tiras para o cara que fez aquilo para que um cara possa descansar em paz.
     E tudo o que você queria era um refrigerante.
     E ainda tem os caras que não querem ir embora, nesses de vez em quanto eu tenho que da uns pontapés, é ai que as coisa ficam feias.
     E era disso que minha mãe estava falando quando disse aquela frase: "Ah, Karen, outra vez?!..."
     Não que eu tivesse com a menor intenção de bagunçar o meu quarto novo. Por isso dei as costas para o fantasma na minha janela e disse:

     - Deixa pra lá, mãe. Está tudo bem. O quarto é maravilhoso. Obrigada mesmo.

     Deu para perceber que ela não acreditou.

     - Que bom, que bom que você gostou - disse ela. - Eu estava meio preocupada. Isto é, sabendo como você não gosta... bem, de lugares antigos.

     Os lugares antigos são os piores, pois quanto mais antigo, mais fácil de ter um fantasma.

     - Na boa mãe... Eu adorei.

     Ouvindo isto, Andy começou a zanzar agitado pelo quarto, mostrando-me que as luzes podiam ser acesas e apagadas com palmas (ai, meu Deus...) e várias outras gracinhas que ele havia providenciado. Eu ia atrás dele, mostrando que estava encantada, mas tomando o cuidado de não olhar na direção do fantasma.
     Depois de um certo tempo, Andy já não tinha mais o que me mostrar e saiu para começar a fazer o jantar especial em minha homenagem. Soneca e Dunga foram "pegar uma onda" enquanto não chegava a hora e Mestre, balbuciando misteriosamente alguma coisa sobre uma "experiência" em que estava trabalhando, meteu-se em alguma outra parte da casa, deixando-me sozinha com minha mãe... quer dizer, mais ou menos.

     - Esta tudo bem mesmo Karen? - Quis saber ela. - Eu sei que é uma mudança muito grande. Sei que é pedir muito de você...

     Eu tirei minha jaqueta de couro. Não sei se já disse, mas estava quente à beça para o mês de janeiro. Uns 25 graus. Eu quase havia torrado no carro.

     Está tudo bem, mãe - respondi. - Mesmo.

     - Estou querendo dizer que pedir que você se separasse da vovó, da Gina, de Nova York... Foi egoísmo meu, eu sei. Sei que as coisas não têm sido... como dizer, fáceis para você. Especialmente desde que papai morreu.

     Minha mãe gosta de pensar que o motivo pelo qual eu não sou a adolescente tradicional do jeito que ela era quando tinha a minha idade - ela era chefe de torcida, rainha de beleza, tinha montes de namorados e coisas do tipo - é por eu ter perdido meu pai tão cedo. Ela culpa a morte dele por tudo, desde o fato de eu não ter amigos - com a exceção da Gina - até minhas eventuais demonstrações de comportamento bizarro.
     E acho mesmo que muitas coisas que fiz no passado podiam parecer bem bizarras para alguém que não soubesse por que eu estava agindo daquela maneira, ou que não pudesse ver para quem eu estava fazendo aquilo. Muitas vezes fui apanhada em lugares onde não deveria estar. Algumas vezes cheguei a ser levada para casa pela polícia, acusada de invasão de propriedade, vandalismo ou arrombamento.
     E embora nunca tenha sido condenada por nada, já passei muitas horas no consultório da terapeuta da minha mãe.
     Acho que os garotos do Andy devem ter ouvido falar alguma coisa sobre isto, daí aquela pergunta sobre andar em gangues. Mas, como disse, nunca tive de cumprir nenhuma pena por nada.
     De modo que não era de estranhar que minha mãe estivesse ali sentada na minha cama, falando de "começar de novo" e coisas assim. Não deixava de ser estranho que ela o estivesse fazendo enquanto aquele fantasma estava sentado ali a alguns passos apenas, nos observando. Mas não importa. Parecia que ela tinha necessidade de falar sobre como as coisas iam ser muito melhores para mim lá na Califórnia.
     E se era isto que ela queria, eu ia fazer tudo que estivesse ao meu alcance para satisfazê-la. Já tinha resolvido não fazer nada que pudesse acabar me levando para a cadeia, o que já era um bom começo.

     - Bom - fez minha mãe, já meio sem fôlego depois de todo aquele discurso para dizer que eu não ia fazer amigos se não fosse simpática. - Então, se você não quer ajuda para desfazer as malas, acho que vou ver como é que o Andy está se saindo com o jantar.

     Além de ser capaz de construir praticamente qualquer coisa, o Andy também era um excelente cozinheiro, o que minha mãe certamente não era nem de longe. Eu respondi:

     - Isso aí, mãe. Faça isso. Vou só me ajeitar um pouco aqui e daqui a pouco desço.

     Minha mãe concordou e se levantou. No momento em que ia passar pela porta, voltou-se e disse, com os olhos azuis cheios de lágrimas:

     - Eu só quero que você seja feliz, Karenzinha. É a única coisa que eu sempre quis. Você acha que vai ser feliz aqui?

     Eu dei um abraço nela.

     - Claro, mãe - respondi. - É claro que vou ser feliz aqui. Já estou me sentindo em casa.

     - É mesmo? - fez minha mãe, fungando. - Jura?

     - Juro.

     E eu não estava mentindo, pois no meu quarto no Brooklyn também havia fantasmas o tempo todo...
     Ela saiu e fechou a porta. Esperei até que não estivesse mais ouvindo os passos dela na escada e então me virei.
     - OK - fui dizendo para aquela presença no assento da janela. - Quem diabos é você?

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