sábado, 10 de novembro de 2012

A Mediadora/A Terra das sombras - Capitulo 8

     Ele não precisou esperar muito. Para dizer a verdade, foi logo depois do almoço que ela veio atrás dele. Não que ele percebesse, claro. Fui eu que imediatamente a vi no meio da multidão, quando todo mundo começou a se encaminhar para os armários. Os fantasmas exalam uma luminosidade que os diferencia dos vivos - felizmente, pois caso contrário muitas vezes eu nem saberia a diferença.
     Seja como for, lá estava ela fulminando-o com olhares de ódio. Sem saber que ela estava ali, as pessoas simplesmente passavam através dela. Eu até que os invejava. Preferia que os fantasmas fossem invisíveis para mim, como são para todo mundo. Sei que se fosse assim eu não teria desfrutado da companhia do meu pai durante esses últimos anos, mas também não estaria ali agora sabendo que a Heather estava para fazer algo terrível. 
     Não que eu soubesse o que ela estava pretendendo fazer com ele. Os fantasmas podem ser bem mauzinhos quando querem. Aquele lance do Dillan com o espelho não era nada. Já houve casos de me atirarem objetos com tanta força que, se eu não tivesse me abaixado, também estaria hoje no mundo dos espíritos. Já sofri concussões e ossos quebrados não sei quantas vezes. Minha mãe acha que eu atraio acidentes. É isso aí, mãe. Isso mesmo. Quebrei o pulso caindo da escada. E caí da escada porque o fantasma de um conquistador espanhol de trezentos anos me empurrou.
     Mas bastou eu ver a Heather para entender que ela estava com intenções nada boas. E eu não chegara a esta conclusão baseada no nosso encontro prévio. Não, senhor. Apenas acompanhei o olhar da falecida e vi que não era exatamente para Bryce que ela estava olhando. O que atraíra sua atenção fora um dos caibros da parte da galeria por onde o Bryce estava passando. E dali onde estava, eu vi que a madeira estava começando a tremer. Mas não em toda a extensão da galeria, claro que não. Era só uma peça que estava tremendo, daquelas bem pesadas. Exatamente a peça que se encontrava acima da cabeça do Bryce.
     Eu agi sem pensar. Joguei-me contra o Bryce com toda força e ambos voamos juntos. O que veio exatamente a calhar. Pois ainda estávamos rolando no chão quando eu ouvi uma enorme explosão. Abaixei a cabeça para proteger os olhos, de modo que não pude ver quando a peça de madeira explodiu. Mas ouvi. E também senti. As lascas de madeira doeram à beça. Ainda bem que eu estava usando calças de lã. 
     O Bryce estava tão quietinho debaixo de mim que eu pensei que um pedaço mais pesado da madeira podia tê-lo atingido entre os lobos frontais ou algo assim. Mas quando afastei meu rosto do seu peito eu vi que ele estava bem - estava apenas de olho grudado, aterrorizado, na tábua de mais de 25 centímetros de largura e quase 70 centímetros de comprimento que viera aterrissar a poucos metros de nós dois. Por toda parte ao nosso redor estavam espalhados pedaços de madeira. Provavelmente o Bryce estava se dando conta de que, se aquela prancha tivesse atingido seu crânio, também haveria agora pedacinhos de Bryce espalhados por ali.

     - Dá licença, dá licença - disse a voz assustada do padre Dominic, que logo vi abrindo caminho pela multidão apavorada que se juntava ali. Ele ficou congelado quando viu aquele pedação de madeira, mas ao dar com Bryce e comigo voltou à ação. - Deus do céu! - exclamou, acorrendo a nós. - Vocês estão bem, crianças? Karen, você se feriu? Bryce?

     Lentamente eu fui me sentando. Eu já tinha me acostumado a me apalpar para ver se algum osso estava quebra
do, e acabei descobrindo, ao longo dos anos, que quanto mais lentamente a gente se reerguer, mais chances terá de descobrir o que está quebrado, e menos chances de apoiar o peso do corpo nessas partes.
     Mas daquela vez nada parecia estar quebrado. Fiquei então de pé.

     - Deus de misericórdia! - dizia o padre Dom. - Têm certeza de que estão bem? 

     - Estou bem - disse eu, me s
acudindo toda. Estava toda coberta de pedacinhos de madeira, por cima da minha melhor jaqueta Donna Karan. Olhei em volta para ver se via a Heather, pode crer que se a tivesse visto ali naquela hora eu a teria matado, realmente teria... só que ela já estava morta, claro. Mas ela já tinha ido embora.

     - Meu Deus! - exclamou Bryce, aproximando-se de mim. Ele não parecia estar ferido, só um tanto abalado. Na verdade seria difícil ferir um grandalhão como ele, com seu metro e 80 de altura e aqueles ombros largos, um verdadeiro Baldwin.
     E era comigo que ele estava falando. Comigo!

     - Caramba, você está bem? - quis saber. - Obrigado. Meu Deus! Acho que você salvou a minha vida.

     - Ora, não foi nada - dis
se eu, e não resisti a esticar a mão e pinçar uma farpa de madeira do seu suéter. Caxemira. Exatamente como eu imaginara.

     - O que está acontecendo aqui?

     Um sujeito alto metido num monte de túnicas e com uma calota vermelha na cabeça abria caminho na multi¬dão. Quando viu aquela madeira toda no chão e olhou para cima para avaliar o buraco que fora aberto, ele se virou para o padre Dom e disse:


     - Viu? Está vendo, Dominic? É nisto que dá permitir que os seus lindos passarinhos façam ninhos onde bem entendem! O sr. Ackerman nos avisou que isto podia acontecer,- e agora veja só! Ele tinha razão! Alguém podia ter morrido!

     Só podia mesmo ser mo
nsenhor Constantine. 

     - Sinto muito, monsenhor, sinto muito mesmo - disse padre Dom. - Não sei como uma coisa dessas foi acontecer. Graças a Deus ninguém ficou ferido - e, voltando-se para Bryce e para mim. - Vocês dois estão bem mesmo? Parece-me que a senhorita Jilian está meio pálida. Vou levá-la para ver a enfermeira, se não se importa, Karen. E vocês, crianças, voltem todas para a sala de aula. Todos estão bem. Foi apenas um acidente. Agora vão indo.

     Incrivelmente, todo mundo obedeceu. Padre Dominic era assim mesmo. De uma maneira ou de outra, você ac
abava fazendo o que ele dizia. Felizmente ele usava seus poderes para o bem, e não para o mal!
     Gostaria de poder dizer o mesmo sobre o monsenhor. Lá estava ele de pé no corredor, que de repente ficara vazio, contemplando o enorme pedaço de madeira. Qualquer um poderia dizer só de olhar que ele não tinha nada de podre. Claro que a madeira não era nova, mas estava perfeitamente seca.

     - Vou mandar tirar daí esses ninhos, Dominic - disse monsenhor, asperamente. - Todos eles. Nós simplesmente não podemos correr este tipo de risco. E se um turista estivesse em pé aqui? E Deus nos livre, o arcebispo!... O arcebispo estará aqui no mês que vem, como você sabe. E se o arcebispo Rivera estivesse bem aqui e esta viga caísse? E então, Dominic?

     As freiras que havia
m acorrido, ouvindo todo aquele fuzuê, lançavam olhares de tamanha reprovação para o pobre padre Dominic que eu quase disse alguma coisa. Cheguei até a abrir a boca, mas o padre Dom apertou mais o meu braço e começou a caminhar comigo para longe dali.

     - Naturalmente - concordou. - Tem toda razão. Vou mandar o pessoal da manutenção cuidar disso imediatamente, monsenhor. Imagine se o arcebispo fosse ferido!... Nem pensar.

     - Meu Deus, quan
ta besteira! - desabafei, assim que nos vimos dentro do gabinete do diretor, com a porta fechada. - Ele só pode estar brincando, pensar que um casal de passarinhos podia fazer tudo aquilo.

     Padre Dominic tinha atravessado todo o gabinete direto para um armário onde se encontravam alguns troféus e placas - prêmios de magistério, como eu viria a descobrir. Antes de ser removido pela diocese para um cargo administrativo, padre Dominic havia sido um professor de biologia muito popular e estimado. Ele estendeu o braço por trás de um dos troféus e apanhou um maço de cigarros.

     - Receio que talvez seja um pouco sacrílego, Karen, dizer que um monsenhor da Igreja católica pensa best
eiras - disse ele, de olhos baixos sobre o maço vermelho e branco.

     - Ainda bem então que eu não sou católica - disse eu. - E pode ficar à vontade para fumar se quiser. Não vou dizer a ninguém.

     Ele continuo
u contemplando o maço de cigarros sonhadoramente por mais um minuto, deu um suspiro profundo e voltou a guardá-lo onde estava.

    - Não, muito obrigado, mas é melhor não - concluiu. 

     Minha nossa! Devia ser mesmo uma grande vantagem eu nunca ter me viciado com essa história de cigarro. Achei melhor mudar de assunto e então me debrucei para dar uma olhada nos troféus.


     - 1964 - disse. - O senhor já está aqui há um certo tempo...

     - Estou mesmo - reconh
eceu padre Dom, sentando-se em sua escrivaninha. - Mas, Santo Deus, Karen, o que exatamente que aconteceu lá?

     - Ora - dei de ombros -, foi só a Heather. Acho que agora já sabemos por que ela ainda está rondando por aí. Quer matar o Bryce Martinson.

     Padre Dominic sacudiu a cabeça:


     - Mas isto é terrível! Terrível mesmo. Eu nunca vi tanta... tanta violência partindo de um espírito. Nunca, em todos estes anos como mediador.

     - É mesmo? - fiz eu, olhando pe
la janela. O gabinete do diretor não dava para o mar, mas para as colinas onde eu morava. - Olha só - prossegui. - Daqui se pode ver a minha casa!

     - E era uma moça tão boa - continuou ele. - Nunca tivemos qualquer problema disciplinar com Heather Chambers em todos os anos que ela passou na Academia da Missão. Por que estaria sentindo tanto ódio de um rapaz que dizia amar?

     Eu olhei para ele de lado:


     - O senhor está brincando comigo? 

     - Não, tudo bem, eu sei que eles tinham acabado o namoro... Mas emoções tão violentas... essa fúria assassina a que ela se entregou... É tão inusitado...

     Eu balancei a cabeça.

     - Olha, eu sei que o senhor fez voto de castidade e tudo isso, mas o senhor nunca se apaixonou? Não sabe como é? Aquele cara passou ela para trás. Ela achava que eles iam se casar. Sei que parece bobagem, ainda mais que ela só tinha - quantos anos mesmo? Dezesseis? Ainda assim, ele simplesmente botou ela no chinelo. Se isso não é suficiente para levar uma garota a um acesso de fúria assassina...

     Ele me olhava pensativo.

     - Você parece estar falando por experiência própria.

     - Quem, eu? Abso
lutamente. Isto é, já gostei de uns caras e tal, mas não posso dizer que algum deles tenha correspondido, o que lamento muito. Ainda assim, posso imaginar como a Heather deve ter-se sentido quando ele acabou com ela.

     Com vontade de se matar, suponho - disse padre Dominic.

     - Exatamente. Mas se matar acabou não sendo suficiente. Ela não vai ficar satisfeita enquanto não o levar com ela.


     - Isto é terrível - disse padre Dominic. - Realmente terrível. Eu conversei com ela até acabar a saliva, mas ela não ouve. E agora, no primeiro dia de aula, acontece isso. Vou ter que recomendar que esse rapaz fique em casa até que tudo seja resolvido.

     Eu achei g
raça: 

     - E como é que o senhor vai fazer isso? Vai dizer a ele que sua namorada morta está tentando matá-lo? Aposto que monsenhor adoraria...

     - Em absoluto - resp
ondeu padre Dom, abrindo uma gaveta e começando a remexer nela. - Com um mínimo de engenhosidade, podemos conseguir uma boa semana ou duas para ele em casa...

     - Mas o que é isto?! - exclamei, lívida. - O senhor vai envenená-lo? Pensei que o senhor fosse um padre! Esse tipo de coisa não é proibido?

     - Envenenar? Não, não, Karen
. Vou infestá-lo com lêndeas. A enfermeira examina a cabeça dos alunos uma vez por semestre em busca de piolhos. Apenas vou dar um jeito para que o jovem sr. Martinson apresente um caso bem adiantado de infestação...

     - Oh meu Deus! - berrei. - Que horror! O senhor não pode encher a cabeça dele de piolhos!

     Padre Dominic levantou os olhos da gaveta.


     - E por que não? Servirá perfeitamente para o que precisamos. Mantê-lo longe do perigo por tempo suficiente para que você e eu possamos convencer a srta. Chambers e...

     - O senhor não pode
 encher a cabeça dele de piolhos! - repeti, talvez com mais veemência que necessário. Nem sei por que eu estava tão contra a idéia, só que... bem, ele tinha um cabelo tão bonito. Eu tinha dado uma sacada legal quan¬do estávamos lá jogados no chão juntos. Era um cabelo macio e encaracolado, o tipo de cabelo bom para ficar passando os dedos. A simples idéia de insetos rastejando por ali embrulhava meu estômago. Como era mesmo aquela canção?...
     Você me olhou nos olhos. E eu fui ficando. Passei a mão nos seus cabelos. E um piolho mordeu meu dedo.

     - Puxa vida - eu disse, sentando no tampo da escrivaninha. - Guarda os piolhos, tá bem? Deixa que eu cuido da Heather. O senhor disse que está falando com ela há quanto tempo? Uma semana?

     - Desde o Ano Novo - respondeu padre Dominic. - Exatamente. Foi quando ela apareceu aqui pela prime
ira vez. Agora entendo que ela só estava esperando que Bryce voltasse.

     - OK. Então deixa que eu cuido disso. Talvez ela só esteja precisando de uma conversa entre garotas.

     - Não sei... - fez padre Dominic, olhando-me meio de soslaio. - Fico achando que você tem uma certa tendência para... bem, para tentar resolver as coisas um tanto... fisicamente. O mediador deve desempenhar um papel não-violento, Karen. Você deve ser alguém que ajuda os espíritos perturbados, em vez de machucá-los.

     - Alô, alô! O s
enhor por acaso não estava lá fora ainda há pouquinho? Acha que eu podia simplesmente ficar ali e convencer aquela viga a não esmagar o crânio do Bryce? 
     
     - Claro que não. Só estou querendo dizer que, se você tentasse demonstrar um pouco de compaixão...

     - Caramba! Eu tenho muita compaixão, padre. Meu coração ficou partido com a história dessa garota, realmente ficou. Mas este aqui é o meu colégio, entende? O meu colégio. Não o dela. Não é mais. Ela tomou uma decisão e agora tem que aguentar as conseqüências. E eu não vou permitir que ela leve o Bryce ou quem quer que seja com ela.

     Padre Dominic parecia cético:


     - Bem, se você está tão segura assim...

     - Estou segura, sim - respondi, quase saltando por cima da escrivaninha. - Deixe comigo, está bem?

     Padre Dominic concordou, mas sem muita convicção, deu para ver. Precisei que ele me desse um passe por escrito, para poder voltar à sala de aula sem ser interceptada no corredor por uma das freiras. Eu estava esperando que uma delas, uma noviça de cara murcha, acabasse de examinar o passe, para poder passar para o corredor, quando uma porta lateral onde estava escrito ENFERMARIA se abriu e lá de dentro saiu o Bryce com o seu próprio passe.

     - Ei! - não pude impedir-me de gritar. - Que aconteceu? Ela por acaso... quer dizer, aconteceu mais alguma coisa? Você está ferido?

     Ele deu um sorriso algo tímido:
 
     - Não. Só esta farpa desgraçada que me entrou debaixo da unha. Estava tentando me livrar de todas aquelas farpas que se agarraram à minha calça e uma delas entrou ali, e... ele mostrou a mão direita, com uma enorme bandagem envolvendo o polegar. 

     - Eca! - fiz eu.

     - É isso aí - disse ele, todo injuriado. - E ainda por cima ela usou mercúrio cromo. Odeio esse troço.

     - Cara! - disse eu. - Foi mesmo um dia de cão para você...

     - Nem tanto assim - respondeu ele, baixando o polegar. - Pelo menos não foi tão ruim quanto teria sido se você não estivesse lá. Se não fosse você, eu estaria morto.

     Ele percebeu que eu havia saído da sala do diretor e perguntou:

     - Algum problema?

     - Não - respondi. - Padre Dominic só queria que eu preenchesse uns formulários. Sou nova aqui, você sabe.

     - E como a aluna nova - interrompeu a noviça com severidade - deve ficar sabendo que não é permitido ficar perambulando pelos corredores. É melhor vocês dois irem para suas salas.

     Eu me desculpei e apanhei de volta o meu passe. Muito cavalheirescamente, Bryce se ofereceu para me mostrar onde seria minha próxima aula, e a noviça se afastou, aparentemente satisfeita. Quando já se havia distanciado o bastante para não poder mais ouvir o que dizíamos, Bryce disse:

     - Você é a Karen, certo? O Jake me falou de você. Você é a meia irmã dele que chegou de Nova York.

     - Exatamente - respondi. - E você é o Bryce Martinson.

     - Ah, o Jake falou de mim?

     Eu quase dei uma risada só de pensar no Soneca falando alguma coisa.

     - Não, não foi o Jake.

     Ele fez um "Oh" tão decepcionado que quase senti pena dele.

     - Aposto que as pessoas devem estar falando de mim, não?

     - Um pouco - arrisquei. - Sinto muito pelo que aconteceu com a sua namorada.

     - Eu também, pode acreditar - disse ele, sem aparentar ter ficado aborrecido porque eu mencionara o assunto. - Eu nem queria voltar aqui depois... você sabe. Tentei me transferir, mas não tinha vaga. Nem a escola pública quis me receber. É muito difícil conseguir transferência faltando só um semestre. Eu não teria voltado de jeito nenhum, só que... bem, você sabe. As faculdades só te aceitam quando você já concluiu o segundo grau.

     Eu achei graça. 

     - Já ouvi falar.

     - Seja como for...

     Bryce percebeu que eu estava segurando meu casaco. E realmente eu o estivera carregando o dia inteiro, já que não consegui usar o meu armário, cuja porta não se abria por ter ficado muito amassada com o impacto do corpo astral da Heather. Então ele perguntou:

     - Quer que eu leve para você?

     Fiquei tão apatetada com tanta gentileza que, sem nem pensar, fui dizendo que sim e entregando o casaco. Ele o apanhou dobrado num dos braços e disse:

     - Quer dizer então que todo mundo deve estar me culpando pelo que aconteceu... Pelo que aconteceu à Heather. 

     - Não creio - respondi. - No máximo, as pessoas estão culpando a Heather pelo que aconteceu com ela.

      - Sei - disse Bryce -, mas estou querendo dizer que fui eu que a levei a isto, sabe? O problema é este. Se eu não tivesse rompido com ela...

      - Você se tem mesmo em muito alta conta, não é? Ele foi apanhado de surpresa.

     - Como?

      - Bem, o fato de você deduzir que ela se matou porque você rompeu com ela... Não acho que ela tenha se matado por isto. Ela se matou porque estava doente. E você não tinha nada a ver com o fato de ela estar assim. O fato de você ter terminado com ela pode ter sido a gota d'água para o colapso final, mas podia perfeitamente ter sido outro o motivo - o divórcio dos pais dela, o fato de ela não ter sido escolhida chefe da torcida, a morte do gato... Qualquer coisa. Portanto, tente não ser tão duro consigo mesmo.

     Tínhamos chegado à porta da minha sala: acho que era geometria, com irmã Mary Catherine. Virei para ele e peguei de volta o meu casaco.

     - Bom, eu desço aqui. Obrigada pela carona. - Ele agarrou uma das mangas do meu casaco.

      - Espera aí - disse, olhando-me firmemente. Era difícil ver seus olhos, pois estava bem escuro na galeria, protegi¬da como era do sol. Mas eu lembrava, daquele momento em que havíamos caído juntos no chão, que seus olhos eram azuis. De um azul muito lindo. - Espera um pouco - disse ele. - Deixe-me levá-la para sair hoje à noite. Para agradecer por ter salvo a minha vida e tudo mais.

      - Obrigada - respondi, dando uma puxada no meu casaco

      - Mas já tenho planos para hoje à noite.

      Eu só não disse que meus planos envolviam sua pessoa de uma maneira bem íntima.

      - Então amanhã à noite - insistiu ele, ainda agarrado ao meu casaco.

      - Olha, eu não tenho permissão para sair à noite em dias de semana - disse eu.

      Era a maior mentira. À parte o fato de ter sido levada para casa algumas vezes pela polícia, estava implícito que minha mãe confiava em mim. Se eu quisesse sair à noite num dia de semana, ela deixaria.  O fato é que nunca tínhamos falado desse assunto, pois nenhum cara tinha me convidado para sair, fosse em dia de semana ou em qualquer outro.
     Não que eu seja um horror ou algo assim. Posso não ser nenhuma Cindy Crawford, mas também não sou um bagu¬lho. Acho que no fundo o que acontece é que eu sempre fui considerada meio esquisita em minha antiga escola. É o que costuma acontecer com garotas que ficam falando sozinhas e se metendo com a polícia.
     Mas não me entendam mal. De vez em quando chegavam caras novos na escola e eles mostravam interesse por mim... mas só até que alguém que me conhecesse passasse a eles as informações... Aí eles passavam a me evitar como se eu fosse uma leprosa.
     Garotos da Costa Leste. Não sabem de nada...
     Mas agora eu tinha a oportunidade de começar tudo de novo, com toda uma nova população de caras que não sabiam nada do meu passado - quer dizer, exceto Soneca e Dunga, mas duvido que eles fossem dar com a língua nos dentes, pois nenhum dos dois poderia ser considerado muito... loquaz, por assim dizer.
     Seja como for, o fato é que nenhum dos dois havia entrado em contato com Bryce, pois logo em seguida ele insistiu:

     - Então no fim de semana. O que você vai fazer no sábado à noite?

     Eu não estava certa de que fosse lá uma idéia tão boa assim me envolver com um cara cuja falecida namorada estava tentando matá-lo. E se ela descobrisse e ficasse ressentida comigo? Eu podia apostar que o padre Dominic não ia achar muito legal eu estar saindo com o Bryce.
     Mas por outro lado, quantas vezes uma garota como eu é convidada para sair por um cara sensacional como Bryce Martinson?

     - OK - concordei. - No sábado. Me pega às sete?

     Ele deu um sorriso. Tinha dentes lindos, brancos e regulares.

     - Às sete - confirmou, largando o meu casaco. - Até lá. Se não antes...

     - Até lá, então - disse eu, com a mão na porta da classe de geometria da irmã Mary Catherine. - Ah, sim, Bryce!

     Ele já estava seguindo para sua sala pela galeria.

     - Sim...

     - Cuidado por onde passa...

     Acho que ele piscou para mim, mas era difícil dizer na sombra.

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