sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A Mediadora/O Arcano Nove - Capitulo 4

     Quase morri de susto.

     - Meu Deus, papai. - Fechei a porta da geladeira com força. - Eu já disse para não fazer isso.


     Meu pai - ou o fantasma do meu pai, devo dizer - estava encostado na bancada da cozinha, com os braços cruzados no peito. Parecia presunçoso. Ele sempre parece presunçoso quando consegue se materializar pelas minhas costas e me matar de susto.


     - Então - disse ele, tão casualmente como se estivéssemos falando de sanduíches numa lanchonete. - Como vão as coisas, moça?


     Olhei-o irritada. Meu pai continuava exatamente como quando fazia suas visitas-surpresa ao nosso apartamento no Brooklyn. Estava usando a roupa com a qual tinha morrido, calça de moletom cinza e uma camisa azul onde estava escrito Homeport, Menemsha, Frutos do Mar Frescos o Ano Inteiro.


     - Papai. Onde você esteve? E o que está fazendo aqui? Não deveria estar assombrando os novos inquilinos do nosso apartamento no Brooklyn?
     - Eles são uns chatos. Dois yuppies. Queijo de cabra e cabernet sauvignon, é só disso que falam. Pensei em ver como você e sua mãe estavam se virando. - Ele estava espiando pelo passa-pratos que Andy havia instalado ao atualizar a cozinha estilo 1850 quando tinha comprado a casa junto com mamãe.
     - É ele? - perguntou meu pai. - O cara com o... O que é aquilo, afinal?
     - É uma quesadilla. E sim, é ele. - Agarrei o braço do meu pai e o arrastei até a ilha de instrumentos no centro, de modo que não conseguisse vê-los mais. Tinha de falar sussurrando para garantir que ninguém entreouvisse. - É por isso que você está aqui? Para espionar mamãe e o novo marido dela?
     - Não - disse meu pai, parecendo indignado. - Eu tenho um recado para você. Mas admito que queria dar uma passada e verificar como são as coisas, garantir que ele é suficientemente bom para ela. Esse tal de Andy.


     Olhei-o zangada.


     - Papai, acho que a gente já falou isso. Você deveria ir em frente, lembra?
Ele balançou a cabeça, tentando fazer sua cara de cachorrinho triste, achando que isso poderia me fazer recuar.
     - Eu tentei, Karen - falou pesaroso. - Tentei mesmo. Mas não posso.


     Encarei-o cética. Será que já mencionei que, na vida, meu pai tinha sido advogado criminologista, como sua mãe? Ele era um ator quase tão bom quanto Lassie. Podia fazer cara de cachorrinho triste como ninguém.


     - Por que, papai? O que está segurando você? Mamãe está feliz. Juro que está. Isto basta para dar vontade de vomitar, mas está feliz demais. E eu estou indo bem, verdade. Então o que está segurando você aqui?


     Ele deu um suspiro triste.


     - Você diz que está bem, Karen. Mas não está feliz.
     - Ah, pelo amor de Deus. Não vem com essa de novo. Sabe o que me deixaria feliz, papai? Você ir em frente. Isso me faria feliz. Você não pode passar sua pós-vida me seguindo e se preocupando comigo.
     - Por quê?
     - Porque - sibilei com os dentes trincados - você vai me deixar maluca.


     Ele piscou tristonho.


     - Você não me ama mais, é isso, moça? Certo. Captei a dica. Talvez eu vá assombrar vovó um tempo. Ela não é tão divertida porque não pode me ver, mas talvez se eu chacoalhar algumas portas...
     - Papai! - Olhei por cima do ombro para garantir que ninguém estivesse ouvindo. - Olha. Qual é o recado?
     - Recado? - Ele piscou, depois disse: - Ah, é. O recado. - De repente ele ficou sério. - Eu soube que você tentou contatar um homem hoje.


     Olhei-o de soslaio, cheia de suspeitas.


     - Red Beaumont. É, tentei. E daí?
     - Esse não é um cara com quem você queira mexer, Karen.
     - Hã-hã. E por quê?
     - Não posso dizer por quê. Só tenha cuidado.


     Encarei-o. Puxa, realmente. Até que ponto uma pessoa pode ser irritante?


     - Obrigada pelo aviso enigmático, papai. Isso realmente ajuda.
     - Desculpe, Karen. De verdade. Mas você sabe como essas coisas são. Eu não tenho a história toda, só... Sensações. E minha sensação com relação a esse Beaumont é que você deveria ficar longe. Muito longe.
     - Bem, não posso fazer isso. Sinto muito. 
     - Karen, este não é um caso que você deva enfrentar sozinha.
     - Mas eu não estou sozinha, papai. Eu tenho... - Hesitei. Quase tinha dito Dillan.


     Você pode pensar que meu pai já soubesse dele. Quero dizer, se ele sabia sobre Red Beaumont, por que não saberia sobre Dillan?
     Mas aparentemente não sabia. Sobre Dillan quero dizer. Porque se soubesse, pode apostar que eu ficaria sabendo. Quero dizer, qual é, um cara que não sai do meu quarto? Os pais odeiam isso.
     Então falei:


     - Olha, eu tenho o padre Dominic.
     - Não. Ele também não é bom o bastante.


     Encarei-o, irritada.


     - Ei. O que você sabe sobre o padre Dom? Papai, você andou me espionando?


     Meu pai ficou sem jeito.


     - A palavra espionar tem conotações muito negativas. Eu só estava dando uma conferida em você, só isso. Você pode culpar um homem por querer ver como sua filhinha está?
     - Ver como eu estou? Papai, até que ponto você anda vendo como eu estou?
     - Bem, vou lhe dizer uma coisa. Eu não estou empolgado com esse tal de Dillan.
     - Papai!
     - Bem, o que você quer que eu diga? - Meu pai abriu os braços num gesto do tipo "então me processe". - O sujeito está praticamente morando com você. Não é certo. Quero dizer, você é uma garota muito nova.
     - Ele é falecido, papai, lembra? Minha virtude não corre perigo.
     Infelizmente.
     - Mas como você vai trocar de roupa com um rapaz no quarto? - Meu pai, como sempre, tinha ido direto ao ponto. - Não gosto disso. E vou trocar uma ou duas palavrinhas com ele. Enquanto isso você vai ficar longe desse tal de Sr. Red. Entendeu?


     Balancei a cabeça.


     - Papai, você não entende. Dillan e eu pensamos em tudo. Eu não...
     - Eu falei sério, Karen.


     Quando meu pai me chamava de Karen, estava pegando pesado. Revirei os olhos.


     - Certo, pai. Mas quanto ao Dillan... Por favor, não diga nada a ele. Ele passou muito aperto, sabe? Quero dizer, ele praticamente morreu antes de realmente ter chance de viver.
     - Ei - disse meu pai, dando um dos seus grandes sorrisos inocentes. - Eu já deixei você na mão algum dia, querida?


     Já, eu quis dizer. Muitas vezes. Onde ele estava, por exemplo, no mês passado quando eu fiquei tão nervosa por estar me mudando para outro estado, começando numa escola nova, vivendo com um monte de gente que eu mal conhecia? Onde ele estava na semana passada, quando um dos seus colegas tentou me matar? E onde estava na noite de sábado quando eu esbarrei naquele sumagre venenoso?
     Mas não falei o que queria. Em vez disso falei o que achei que devia. É isso que a gente faz com membros da família.


     - Não, papai. Você nunca me deixou na mão.


     Ele me deu um grande abraço e desapareceu tão abruptamente quanto havia surgido. Eu estava calmamente colocando cereal numa tigela quando mamãe entrou na cozinha e acendeu a luz.


     - Querida? - disse ela parecendo preocupada. - Você está bem?
     - Claro, mamãe. - Enfiei um pouco de cereal na boca. - Por quê?
     - Eu achei... - Mamãe estava me espiando curiosamente. - Querida, eu pensei ter ouvido você dizer... Hmm... Bem, eu pensei ter ouvido você falando com... Você disse a palavra pai?


     Mastiguei. Eu estava totalmente acostumada a esse tipo de coisa.


     - Eu falei "ai". Fui provar o leite e tomei um susto, acho que ele está azedo.


     Minha mãe pareceu imensamente aliviada. O negócio é que ela me pegou falando com papai mais vezes do que eu consigo contar. Ela provavelmente me acha um caso de hospício. Lá em Nova York ela costumava me mandar ao seu terapeuta, que lhe disse que eu não era um caso de hospício, só uma adolescente. Cara, eu dei trabalho ao velho doutor Mendelsohn, vou te contar.
     Mas tinha de sentir pena de mamãe, de certa forma. Quero dizer, ela é uma figura legal e não merece ter uma filha mediadora. Eu sei que sempre fui meio um desapontamento para ela. Quando fiz quatorze anos ela me deu minha própria linha telefônica, achando que tantos garotos iriam ligar para mim que seus amigos nunca poderiam fazer contato. Dá para imaginar como ficou frustrada quando ninguém, a não ser minha melhor amiga Gina, ligava para a linha particular, e geralmente só para me contar sobre os encontros que ela vinha tendo. Os garotos do meu antigo bairro nunca se interessavam muito em me convidar para sair.


     - Bem - disse mamãe, animada. - Se o leite está azedo, acho que você não tem opção além de experimentar uma quesadilla de Andy.
     - Fantástico - gemi. - Mamãe, você sabe que aqui é maio o ano inteiro. A gente não pode virar uma porca no inverno como fazia lá em casa.


     Minha mãe suspirou, meio triste.


     - Você realmente odeia tanto isso aqui, querida?


     Olhei-a como se ela fosse maluca, para variar.


     - O que você quer dizer? Por que acha que eu odeio isso aqui?
     - Você. Você acabou de falar do Brooklyn como "lá em casa".
     - Bem - falei, sem graça. - Isso não significa que eu odeie este lugar. Só não me sinto em casa ainda.
     - De que você precisa para se sentir? - Minha mãe empurrou meu cabelo para longe dos olhos. - O que eu posso fazer para que você se sinta em casa?
     - Meu Deus, mamãe - falei, saindo de baixo dos dedos dela. - Nada, tudo bem. Eu vou me acostumar. Só me dê uma chance.


     Mas mamãe não estava engolindo.


     - Você sente falta de Gina, não é? Você não fez nenhum amigo realmente íntimo aqui, eu notei. Pelo menos não como Gina. Você gostaria, se ela viesse fazer uma visita?


     Eu não podia imaginar Gina, com suas calças de couro, piercing na língua e trancinhas de aplique em Carmel, Califórnia, onde usar conjunto de bermuda caqui e suéter é praticamente uma lei obrigatória.


     - Acho que seria legal - falei.


     Mas não parecia muito provável. Os pais de Gina não têm muito dinheiro, de modo que não teriam como mandá-la para a Califórnia assim, de uma hora para a outra. Mas eu gostaria de ver Gina diante de Kelly Prescott. Tinha certeza de que os apliques de cabelo iriam voar.
     Mais tarde, depois do jantar, do kickboxing e do dever de casa, com uma quesadilla coagulando no estômago, decidi, apesar dos avisos de meu pai, abordar o problema do Red uma última vez antes de ir dormir. Eu tinha conseguido o telefone da casa de Tad Beaumont - que não constava da lista, claro - do modo mais desonesto possível: no celular de Kelly Prescott, que eu tinha pedido emprestado durante a reunião do diretório fingindo que ia ligar para saber sobre os consertos na estátua do padre Serra. O celular de Kelly tinha agenda e eu peguei o número de Tad antes de devolver a ela.
     Ei, é um serviço sujo, mas alguém tem de fazê-lo.
     Eu tinha esquecido de levar em conta, claro, o fato de que Tad, e não seu pai, poderia atender. O que aconteceu depois do segundo toque.


     - Alô? - disse ele.


     Reconheci a voz instantaneamente. Era a mesma voz macia que tinha acariciado meu rosto na festa da piscina.
     Certo, vou admitir. Entrei em pânico. Fiz o que qualquer garota americana com sangue nas veias faria na mesma situação.
     Desliguei.
     Claro, não pensei que ele tinha um identificador de chamadas. Assim, quando o telefone tocou alguns segundos depois, presumi que era Cee Cee, que tinha prometido ligar com as respostas do nosso dever de geometria - eu tinha ficado meio atrasada, com todo o negócio de mediação que vinha fazendo... Não que essa fosse a desculpa que dei a Cee Cee, claro - por isso atendi.


     - Alô? - disse aquela mesma voz macia em meu ouvido. - Você ligou para mim agorinha mesmo?


     Um monte de palavrões me passou em alta velocidade pela cabeça. Em voz alta, entretanto, só disse:


     - Ah. Talvez. Mas por engano. Desculpe.
     - Espera. - Não sei como ele sabia que eu estava para desligar. - Sua voz parece familiar. Eu conheço você? Meu nome é Tad. Tad Beaumont.
     - Não - falei. - Não faço idéia. Tenho de ir, desculpe.


     Desliguei e falei mais um monte de palavrões, dessa vez em voz alta. Por que não pedi para falar com o pai dele? Por que eu fui uma idiota tão grande? O padre Dom estava certo. Eu era um fracasso como mediadora. Um fracasso enorme. Era capaz de exorcizar espíritos malignos sem problema. Mas quando se tratava de lidar com os vivos, era o pior malogro do mundo.
     Esse fato penetrou ainda mais fundo na minha cabeça quando, umas quatro horas depois, fui acordada de novo por um grito de gelar o sangue.

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