sábado, 27 de abril de 2013

A Mediadora/O Arcano Nove - Capitulo 2


     Na primeira vez em que ela apareceu foi mais ou menos uma hora depois de eu ter voltado da festa de piscina para casa. Por volta das três da manhã, acho. E o que ela fez foi parar perto da minha cama e começar a gritar.
     Gritar de verdade. Alto de verdade. Ela me acordou de um sono de pedra. Eu estava ali sonhando com o Bryce Martinsen. No sonho, eu e ele estávamos percorrendo a Seventeen Mile Drive num conversível vermelho. Não sei de quem era o conversível. Dele, acho, já que eu ainda não tenho carteira de motorista. O cabelo macio e cor de trigo de Bryce estava balançando ao vento e o sol ia afundando no mar, deixando o céu todo vermelho, laranja e roxo. Nós estávamos fazendo curvas, sabe, nos penhascos acima do Pacífico, e eu nem me sentia enjoada por causa do carro nem nada. Era um sonho realmente fantástico.
     Então a mulher começou a berrar, praticamente no meu ouvido.
     E eu pergunto a você: Por que eu?
     Claro que me sentei imediatamente, totalmente acordada. Uma mulher morta aparecer berrando no quarto faz isso com a gente. Quero dizer: acordar na hora.
     Fiquei ali sentada piscando, porque meu quarto estava escuro de verdade - bem, era de noite. Você sabe, de noite, quando as pessoas normais dormem.
     Mas não nós, os mediadores. Ah, não.
     Ela estava parada num trecho fino de luar que entrava pelas janelas salientes do outro lado do meu quarto. Usava um agasalho de moletom com capuz, camiseta, calças pescando siri e tênis de cano alto. O cabelo era curto, castanho ruço. Era difícil dizer se era nova ou velha com aquela gritaria toda, mas meio que deduzi que tinha mais ou menos a idade da minha mãe.
     Por isso não saí da cama e não lhe dei um soco ali, na hora.
     Provavelmente deveria ter dado. Quero dizer, eu não podia exatamente berrar de volta para ela sem acordar a casa inteira. Eu era a única que podia ouvi -la.
     Bem, pelo menos a única viva.
     Depois de um tempo acho que ela notou que eu estava acordada, porque parou de gritar e enxugou os olhos. Estava chorando pra cacete.

     - Desculpe - disse ela.

     - É, bem, você conseguiu minha atenção. Agora, o que você quer?

     - Eu preciso de você. - Ela estava fungando. – Preciso que você diga uma coisa a uma pessoa.

     - Certo. O quê?


     - Diga a ele... - Ela enxugou o rosto com as mãos. – Diga que não foi culpa dele. Ele não me matou.

     Essa era nova. Levantei as sobrancelhas.

     - Dizer a ele que ele não matou você? - perguntei, só para ter certeza de que tinha ouvido direito.

     Ela confirmou com a cabeça. Era meio bonita, acho de um jeito meio abandonado. Ainda que provavelmente não teria feito mal se tivesse comido um ou dois bolinhos quando estava viva.

     - Você diz? - perguntou ela, ansiosa. - Promete?

     - Claro. Eu digo. Mas para quem?

     Ela me olhou de um jeito engraçado.

     - Red, claro.

     Red? Ela estava brincando?
     Mas era tarde demais. A mulher tinha sumido.
     Assim.
     Red. Eu me virei e bati no travesseiro para afofar de novo. Red.
     Por que eu? Quero dizer, fala sério. Ser interrompida durante um sonho com Bryce Martinsen só porque uma mulher quer que um cara chamado Red saiba que não a matou... Juro, algumas vezes me convenço de que minha vida não passa de uma série de esquetes para as Videocassetadas, sem as partes em que as calças caem.
     Só que minha vida não é tão engraçada, se você pensar bem.
     Especialmente eu não estava rindo quando, no minuto em que por fim achei um ponto confortável no travesseiro e ia fechar os olhos de novo para voltar a dormir, outra pessoa apareceu na faixa de luar no meio do meu quarto.
     Dessa vez não houve nenhum grito. Foi praticamente a única coisa pela qual me senti grata.

     - O que é? - perguntei com uma voz bem grosseira.

     Ele falou, balançando a cabeça:

     - Você nem perguntou o nome dela.

     Eu me inclinei para frente, me apoiando nos dois cotovelos. Era por causa desse cara que eu tinha passado a usar camiseta e short para dormir. Não que eu ficasse andando por aí em camisolas diáfanas antes de ele ter aparecido, mas certamente não iria começar a usar agora que estava dividindo o quarto com alguém do sexo masculino.
     É, você leu isso direito.

     - Como se ela tivesse me dado a chance - falei.


     - Você poderia ter perguntado. - Dillan cruzou os braços diante do peito. - Mas não se incomodou.

     - Com licença - falei sentando-me. - Este é o meu quarto. Vou tratar os visitantes especiais que entrarem nele como eu quiser, muito obrigada.

     - Karen.

     Ele tinha a voz mais suave que se possa imaginar. Mais ainda do que aquele cara, o Tad. Era como seda, ou alguma coisa do tipo. Era realmente difícil ser má com um cara que tinha uma voz daquelas.
     Mas o negócio é que eu precisava ser má. Porque mesmo ao luar eu podia perceber a largura de seus ombros fortes, a abertura em "v" de sua camisa branca e fora de moda, revelando uma pele morena, azeitonada, alguns pelos no peito e provavelmente os abdominais mais bem definidos que você já viu. Também podia ver os planos fortes de seu rosto, a cicatriz minúscula numa das sobrancelhas pretíssimas,
onde alguma coisa - ou alguém - tinha-o cortado uma vez.
     Kelly Prescott estava errada. Martinsen não era o cara mais gato de Carmel. Era Dillan.
     E se eu não fosse má com ele, sabia que ia acabar me apaixonando.
     E o problema era, veja bem, ele estava - hum - morto.

     - Se você vai fazer isso, Karen - disse ele naquela voz sedosa - não faça pela metade.

     - Olha, Dillan. - Minha voz não estava nem um pouco sedosa. Era dura que nem pedra. Ou foi o que eu disse a mim mesma, pelo menos. - Eu venho fazendo isso há muito tempo sem ajuda sua, certo?

     - Ela estava obviamente muito carente e você...

     - E você? - perguntei irritada. - Vocês dois vivem no mesmo plano astral, se é que não estou enganada. Por que você não pegou a patente e o número de registro dela?

     - Patente e o quê?

     Algumas vezes eu esqueço que Dillan morreu há uns cento e cinqüenta anos. Não está exatamente a par do jargão do século vinte e um, se é que você me entende.

     - O nome dela - traduzi. - Por que você não pegou o nome dela?

     Ele balançou a cabeça.

     - Não funciona assim.

     Dillan vive dizendo coisas desse tipo. Coisas cifradas sobre o mundo espiritual que eu, não sendo um espírito, ainda assim deveria entender. Vou te contar, isso me enche o saco. Somando isso ao espanhol - que eu não falo, e que ele usa ocasionalmente, em especial quando está furioso -, eu não faço idéia do que Dillan está dizendo mais ou menos um terço das vezes.

     O que é irritante pra burro. Quero dizer, eu tenho de dividir meu quarto com o cara porque foi nesse quarto que ele levou um tiro, ou sei lá o quê, tipo em 1850, quando a casa era uma espécie de pensão para garimpeiros e vaqueiros - ou, no caso de Dillan, filhos de fazendeiros ricos que deveriam se casar com suas primas lindas e ricas, mas que eram tragicamente assassinados no caminho para a cerimônia.
     Pelo menos foi o que tinha acontecido com Dillan. Não que ele tivesse me contado isso, nem nada. Não, eu tive de deduzir sozinha... ainda que meu irmão adotivo Mestre tenha ajudado. Não é um assunto que Dillan pareça muito interessado em discutir. O que é meio estranho porque, na minha experiência, tudo que os mortos querem falar é como foram para a outra banda.
     Mas não Dillan. Ele só quer falar de como eu sou uma mediadora fajuta.
     Mas talvez ele tenha alguma razão. Quero dizer, segundo o padre Dominic, eu deveria estar servindo de condutora espiritual entre a terra dos vivos e a terra dos mortos. Mas na maior parte do tempo o que estava fazendo era reclamar porque ninguém me deixava dormir.

     - Olha - falei -, eu pretendo ajudar aquela mulher. Só que não agora, certo?

     Agora eu preciso dormir um pouco.

     - Estou totalmente esfrangalhada.

     - Esfrangalhada? - ecoou ele.

     - É. Esfrangalhada. - Algumas vezes acho que Dillan também não entende um terço do que eu falo, se bem que pelo menos eu estou falando nossa língua.

     - Arrasada - traduzi. - Morta. Em farrapos. Exausta.

     - Ah. - Ele ficou ali parado um minuto, me espiando com aqueles olhos escuros, tristes. Dillan tem aquele tipo de olhos que uns caras têm, o tipo de olhos tristes que deixam a gente com vontade de fazer com que não fiquem tão tristes.

     Por isso eu preciso fazer questão de ser tão má com ele. Tenho quase certeza de que há uma regra contra isso. Quero dizer, segundo as diretrizes de mediação do padre Dom. Sobre mediadores e fantasmas se juntando e tentando... bem... botar o outro para cima.
     Se é que você me entende.

     - Então boa noite, Karen - disse Dillan naquela voz profunda e sedosa.

     - Boa noite. - Minha voz não é profunda nem sedosa.

     Naquele momento, de fato, ela saiu meio esganiçada.
     Geralmente é assim quando estou falando com Dillan. Com mais ninguém. Só com o Dillan.
     O que é fantástico. No único momento em que eu quero parecer sensual e sofisticada, fico esganiçada. Fantástico.

     Rolei, puxando as cobertas sobre o rosto, que dava para perceber que estava ruborizado. Quando espiei por baixo delas um instante depois, vi que ele tinha sumido.
     Esse é o estilo do Dillan. Ele aparece quando eu menos espero e desaparece quando menos quero. É assim que os fantasmas agem.
     Veja o meu pai. Ele vem fazendo umas visitas sociais totalmente aleatórias desde que morreu há uma década. E aparece quando eu realmente preciso? Tipo quando mamãe me fez mudar para cá, para uma costa completamente diferente, onde eu não conhecia ninguém e fiquei totalmente solitária? Claro que não. Nenhum sinal do bom e velho papai. Ele sempre foi bastante irresponsável, mas eu realmente achava que no momento em que eu precisasse...
     Mas não posso acusar Dillan de ser irresponsável. Na verdade ele era um pouco responsável demais. Até havia salvado minha vida, não uma vez, mas duas. E eu só o conhecia há duas semanas. Acho que você pode dizer que eu meio que lhe devia uma.
     Então, quando o padre Dominic me perguntou, em sua sala, se tinha acontecido alguma coisa de fantasma, eu meio que menti e disse que não. Acho que é pecado mentir, especialmente para um padre, mas o negócio é o seguinte: Eu nunca contei exatamente ao padre Dom sobre Dillan.
     Só achei que ele poderia ficar perturbado, você sabe, sendo um padre e coisa e tal, ao saber que havia um cara morto no meu quarto. E o fato é que obviamente Dillan estava ali havia tanto tempo por algum motivo. Parte do serviço de mediador é ajudar os fantasmas a deduzir que motivo é esse. Em geral, assim que o fantasma sabe, ele pode cuidar do que o está mantendo preso neste meio de caminho entre a vida e a
morte e ir em frente.
     Mas algumas vezes - e eu suspeitava de que esse fosse o caso de Dillan - o cara morto não sabe por que continua por aqui. Não faz a mínima ideia. É quando eu tenho de usar o que o padre Dom chama de minhas habilidades intuitivas.
     O negócio é que eu sou meio carente nesse departamento porque não sou muito boa em intuição. Sou muito melhor quando eles - os mortos - sabem perfeitamente bem por que continuam por aqui, mas simplesmente não quer em ir para onde devem porque o que os espera lá provavelmente não é assim maravilhoso. Esses são os piores tipos de fantasmas, cujas bundas eu não tenho opção além de chutar.
     Por acaso eles são minha especialidade.
     O padre Dominic, claro, acha que nós devemos tratar todos os fantasmas com dignidade e respeito, sem o uso dos punhos.
     Discordo. Alguns fantasmas simplesmente merecem levar um pau nas fuças. E eu não me sinto nem um pouco mal em fazer isso.
     Mas não a dona que apareceu no meu quarto. Ela parecia u ma figura bem decente, só meio confusa. O motivo para eu não ter contado ao padre Dom sobre ela era que, na verdade, eu estava meio com vergonha do modo como a havia tratado. Dillan estava certo em ter gritado comigo. Eu tinha sido sacana com ela e, sabendo que ele estava certo, tinha sido sacana com ele também.
     Então você vê, eu não podia contar ao padre Dom sobre Dillan nem sobre a dona que Red não tinha matado. Achava que, de qualquer modo, a dona seria atendida logo. E Dillan...
     Bem, com o Dillan eu não sabia o que fazer. Estava praticamente convencida de que não havia nada que pudesse fazer com relação ao Dillan.
     Além disso, eu estava com um certo medo de estar me sentindo assim, porque na verdade não queria fazer nada com relação ao Dillan. Por mais que foss e um saco ter de trocar de roupa no banheiro e não no quarto - Dillan parecia sentir uma aversão ao banheiro, que tinha sido construído depois de ele ter morado na casa - e não poder usar camisolas diáfanas na cama, eu meio que gostava de ter Dillan por pert o. E se
contasse sobre ele ao padre Dom, o padre Dom ficaria todo alterado e incomodado e iria querer ajudá-lo a ir para o outro lado.
     Mas que bem isso iria me fazer? Aí eu nunca mais iria vê -lo.
     Isso era egoísmo da minha parte? Quero dizer, eu meio achava que, se ele quisesse ir para o outro lado, teria feito alguma coisa a respeito. Ele não era um daqueles fantasmas do tipo "me ajuda que eu estou perdido", como a que tinha vindo com o recado para Red. De jeito nenhum. Dillan era um fantasma do tipo "não me xa comigo, eu sou misterioso demais". Você sabe quais são. Aqueles com sotaque e abdominais de matar.
     De modo que admito. Eu menti. E daí? Pode me processar.

     - Não - falei. - Não há nada a relatar, padre Dom. Nem sobrenatural nem de outro tipo.

     Seria minha imaginação ou o padre Dominic pareceu meio desapontado? Para dizer a verdade, acho que ele meio gostou quando eu arrebentei a escola inteira. Sério.
     Por mais que ele reclamasse disso, não acho que se incomode tanto com minhas técnicas de mediação. Isso certamente lhe dava motivo para fazer sermões e, como diretor de uma minúscula escola particular em Carmel, Califórnia, não posso imaginar que ele tenha realmente muito do que reclamar. Além de mim, quero dizer.

     - Bem - disse ele, tentando não deixar que eu visse como estava frustrado com minha falta do que informar. – Tudo bem. - Em seguida se animou. - Eu soube que houve uma batida com três carros em Sunnyvale. Talvez devêssemos ir até lá e ver se alguma daquelas pobres almas perdidas precisa da nossa ajuda .

     Olhei-o como se ele estivesse pirado.

     - Padre Dom - falei chocada.

     Ele brincou com os óculos.

     - É, nós... quero dizer, eu só pensei...


     - Olha, padre - falei me levantando. - O senhor tem de lembrar uma coisa. Eu não sinto o mesmo que o senhor com relação a esse nosso dom. Nunca pedi e nunca gostei dele. Só quero ser normal, sabe?

     O padre Dom pareceu abalado.

     - Normal? - repetiu ele. Como se dissesse: quem raios poderia querer ser normal?

     - É, normal. Quero passar o tempo preocupada com coisas normais com as quais as garotas de dezesseis anos se preocupam. Tipo o dever de casa e por que nenhum garoto quer sair comigo e por que meus irmãos adotivos têm de ser uns panacas tão grandes. Eu não adoro exatamente esse negócio de caça -fantasmas, certo? Então, se eles precisam de mim, que me achem. Mas com toda a certeza não vou procurá-los.

     O padre Dominic não se levantou de sua cadeira. Na verdade não podia, por causa do gesso. Pelo menos não sem ajuda.

     - Nenhum garoto quer sair com você? - perguntou, parecendo perplexo.

     - Eu sei. É um dos grandes enigmas do mundo moderno. Já que eu sou tão linda e coisa e tal. Especialmente com isso aqui. - Levantei minhas mãos soltando líquido.
   
     Mesmo assim, o padre Dominic ficou confuso.

     - Mas você é terrivelmente popular, Karen. Quero dizer, afinal de contas você foi eleita vice-presidente da turma do segundo ano na sua primeira semana na Academia da Missão. E eu julgava que Bryce Martinsen gostava bastante de você.

     - É. Gostava.

     Até que o fantasma de sua ex-namorada - que eu fui obrigada a exorcizar - quebrou a clavícula dele e ele teve de mudar de escola, e então se esqueceu imediatamente de mim.

     - Bem, então - disse o padre Dominic, como se isso resolvesse a coisa. - Você não tem nada com que se preocupar nesse âmbito. O âmbito d os garotos, quero dizer.

     Eu só olhei para ele. Coitado do velho. Isso quase bastou para fazer com que eu sentisse pena.

     - Tenho de voltar para a aula - falei, pegando meus livros. - Ultimamente eu tenho passado muito tempo na sala do diretor, as pessoas vã o pensar que eu tenho alguma ligação com o estabelecimento e pedir para eu me demitir do cargo.

     - Certamente. Claro. Aqui está o seu passe. E tente se lembrar do que nós discutimos, Karen. Um mediador é alguém que ajuda os outros a resolver conflitos. E não alguém que... bem... acerta os outros no rosto.

     Sorri para ele.

     - Vou lembrar disso.

     E lembraria mesmo. Logo depois de ter chutado a bunda de Red.
     Quem quer que ele fosse.

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Desculpa a demora , to em semana de prova .. e desculpa se tiver algum erro , o teclado do pc aqi ta muito ruim , entao eu nao consigo escrever direito ..

Xoxo gatas do meu S2 ..





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